“Como é que você prova que eu sabia?”, pergunta Dilma Rousseff, encarando a reportagem em um apartamento com vista para o rio Hudson, em Nova York (EUA), onde estava em visita uma série de universidades para palestras e entrevistas.
No encontro com a BBC na última quarta-feira, 360 dias depois da Câmara dos Deputados aprovar o processo que levou a seu impeachment, Dilma Rousseff se referia às acusações de Marcelo Odebrecht na operação Lava Jato, usadas no mês passado como argumento para o pedido de cassação de sua chapa de 2014, junto ao presidente Michel Temer.
Se a chapa for cassada, em julgamento ainda sem previsão para ocorrer, tanto Dilma quanto Temer podem perder seus direitos políticos.
“Esses milhões só estão na virtualidade da fala do Dr. Marcelo Odebrecht, não estão em nenhuma realidade”, diz. “É uma acusação muito característica das que fazem a mim. Que tipo de acusação?”, ela mesma pergunta. E se responde: “Ah, ela sabia”.
Na manhã do dia seguinte à divulgação da chamada “lista de Fachin”, que ordenou investigações contra oito ministros, 63 congressistas e três governadores citados nas delações da Odebrecht, a ex-presidente se recusa a comentar os pedidos de abertura de novos inquéritos envolvendo seu nome (ao lado dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva).
“Eu me nego a comentar qualquer coisa, sobre qualquer pessoa que foi mencionada na lista, porque não acho correto. Não vou compactuar com o fórum de julgamento da imprensa antes de o julgamento ser realizado.”
Dilma afirma que não sabia que Eduardo Cunha era corrupto e declara, sobre o aborto, que “não é papel da Presidência discutir propostas do movimento de mulheres”.
‘Acusações virtuais’
Segundo a imprensa nacional, o Ministério Público Eleitoral acusa a campanha de Dilma por suposto recebimento de R$ 112 milhões da Odebrecht – R$ 45 milhões em caixa 2, R$ 17 milhões em “caixa 3” e R$ 50 milhões em propina.
À BBC, Dilma nega irregularidades. “Você tem hoje uma acusação virtual, dizendo que tinha uma conta corrente virtual, conta corrente virtual essa que, por todos os dados que Marcelo Odebrecht mesmo diz, incluindo os registros formais, vamos dizer, no TSE, não se verificam”, afirma.
Dilma continua: “Em que pese que há pessoas avaliando que receber dinheiro em contas secretas, na Suíça, não é tão grave, quero dizer o seguinte: nunca recebi contas no exterior, não tem um único delator que possa dizer que me deu qualquer quantia, de que forma seja. Não recebi por meio de parente, por meio de terceiras pessoas”.
Segundo a ex-presidente, “a acusação contra mim sempre vai ser: ‘Ah, ela sabia’. Por que sabia? ‘Por que tinha que saber‘.”
No último dia 4, o TSE suspendeu o julgamento que pede a cassação da chapa presidencial eleita em 2014, formada por Dilma Rousseff e Michel Temer. O tribunal decidiu por unanimidade reabrir a fase de produção de provas para ouvir novas testemunhas. Com isso, o processo pode levar semanas para ser retomado.
O ministro relator do caso, Herman Benjamin, concordou com a decisão, embora antes tenha negado pedidos semelhantes da defesa de Dilma.
“Eu quero muito ver essa acusação. Quero ver porque vou desconstitui-la”, diz. “Acho que os mecanismos pelos quais a Odebrecht faz a delação, principalmente o senhor Marcelo, têm por objetivo montar a sua defesa, o que é absolutamente normal, a pessoa não tem que se incriminar”, diz a ex-presidente.
Protocolo e aborto
Em uma turnê de palestras pelo mundo, que incluiu paradas em países como Argentina, Uruguai, Suíça e pelo menos cinco universidades americanas, Dilma Rousseff se apresentou como uma política de esquerda, dedicada a evitar que o “neoliberalismo voltasse a reger a economia”.
A reportagem pergunta se Dilma sente que seu discurso está mais à esquerda desde que saiu do poder – a própria CUT (Central Única dos Trabalhadores), ligada historicamente ao PT, criticava medidas de austeridade em seu governo.
“Eu não”, responde Dilma. “Essa sensação se deve ao fato de hoje eu não ter as restrições que um presidente tem que ter protocolarmente.” Ela conta que prefere manter algumas das limitações, como dar opiniões sobre chefes de Estado.
Afirma que “um presidente nem sempre defende só as suas crenças“, e diz que foi obrigada, “em alguns momentos, a defender posições que impliquem na melhor situação possível para a população”.
A BBC pergunta se esse é o caso, por exemplo, do aborto. Em 2014, seu governo recuou após pressões da bancada evangélica e revogou uma portaria que regulava procedimentos a serem tomados pelo Serviço Único de Saúde em casos de aborto legal.
“Acho que um presidente não pode interferir no Brasil em certas questões. Não acho que a questão do aborto seja uma questão de política presidencial. Acho que se o movimento de mulheres conquistar e galvanizar um conjunto de pessoas, o presidente pode manifestar-se a respeito”, diz.
“Porque também isso é uma transferência de reivindicações do movimento para a presidência da República. Não é papel da presidência da República discutir propostas do movimento de mulheres”, acrescenta.
“Pessoalmente, eu sou a favor do direito das mulheres decidirem sobre seus corpos. Agora, como presidente da República, isso não tem cabimento.”
Eduardo Cunha e Michel Temer
À reportagem, a ex-presidente afirma que não sabia que Eduardo Cunha era corrupto antes se tornar pivô do impeachment, até o Ministério Público acusar o seu aliado nas eleições de 2010 e 2014 de desvios e de possuir contas no exterior.
“Eduardo Cunha se transformou na pessoa que a senhora descreve apenas quando ele rompeu com a senhora?”, pergunta a BBC. Hoje, Dilma costuma se referir a Cunha como “gângster”, “golpista” e “conspirador”.
“Ele já era assim. O fato de tirar foto com ele não significa que eu endosso ele, não. Não sei qual era o nível de apoio que ele me dava. A relação dele comigo sempre foi, eu te diria, distante, não foi próxima. Isso é público e notório”, diz.
A reportagem insiste: “Em que momento Cunha se tornou um problema? Só quando ele rompeu com a senhora? Ele já não era corrupto?”.
“Isso eu não sei, pô”, responde Dilma.
“Eu sei que o Eduardo Cunha é corrupto porque o MP publicou a ficha dele. Ninguém achava que ele tinha tantas contas na Suíça. Ninguém achava isso. Até porque o MP teve dificuldade de abrir as contas, né?”
ABBC também pergunta por que ter um “fraco”, como Dilma tem se referido publicamente ao antigo companheiro de chapa Michel Temer, como vice-presidente. “Porque você vai descobrindo que a pessoa é fraca ao longo da vida“, diz, afirmando que a escolha foi feita pelo PMDB, membro da então coligação petista, e não por ela.
// BBC