Paquistanesa cristã passou 9 anos na prisão por causa de um gole de água

(dr) BBC

Asia Bibi foi presa e condenada por blasfêmia depois de beber um copo de água antes de seus colegas muçulmanos

Asia Bibi deixou a casa que dividia com o marido e os filhos e foi trabalhar em uma fazenda na aldeia de Ittanwala, a cerca de 60 km de Lahore, cidade importante do Paquistão. O local onde trabalhava é cercado de campos verdes e árvores frutíferas.

Asia trabalhou como agricultora como muitas mulheres da aldeia. Era um dia de junho de 2009 e os trabalhadores, exaustos após horas colhendo frutas sob o sol escaldante, pararam para descansar. Alguém pediu para que Asia fosse pegar um pouco de água em um poço próximo.

Ela saiu de jarro na mão e, quando voltou, bebeu um pouco de água antes de servir seus colegas muçulmanos. Eles ficaram furiosos. Asia é cristã, e no Paquistão muitos muçulmanos conservadores não gostam de comer ou beber junto de pessoas de outras religiões. Para eles, quem não acredita em Alá é impuro.

Os colegas de Asia disseram que ela era “suja” e não era digna de beber no mesmo copo que eles. Houve discussão, e termos fortes foram ditos por ambos os lados. Cinco dias depois, a polícia invadiu a casa de Asia e a acusou de insultar o profeta Maomé, principal símbolo do Islã, acusação feita também por um clérigo da aldeia.

Reunida em frente à residência de Asia, uma pequena multidão começou a agredi-la na frente da polícia, e ela acabou presa sob a acusação de blasfêmia. Durante o julgamento, em 2010, ela se disse inocente, mas acabou sentenciada à morte. Asia passou os últimos nove anos de sua vida em confinamento solitário.

No Paquistão, a punição por blasfêmia contra o Islã e seu profeta é a prisão perpétua ou a morte. Mas muitas vezes as acusações são utilizadas como forma de vingança por conflitos pessoais. Acusados de blasfêmia, juntamente com as famílias, sofrem represálias e ataques mesmo antes de irem a julgamento.

Agonia infinita

Desde a prisão dela a família de Asia vive escondida e fugindo. “Se um parente querido está morto, o coração consegue se curar depois de algum tempo. Mas quando uma mãe está viva, e ela se separa de seus filhos… A maneira como a Asia foi tirada de nós, a agonia é infinita”, explicou Ashiq, marido de Asia, à BBC.

“Nós vivemos sempre com medo de alguma coisa acontecer conosco, há sempre um sentimento de ansiedade e insegurança. Eu deixo as crianças irem à escola, mas não deixo elas brincarem do lado de fora. Nós perdemos nossa liberdade”, afirmou.

Apesar de anos de insegurança e incerteza, Ashiq nunca desistiu da esposa. “Perdi minha liberdade, meu sustento e minha casa, mas não estou pronto para perder a esperança. Vou continuar lutando pela liberdade de Asia”, disse, há quase um ano.

No ano passado, em 31 de outubro, nove anos depois da prisão de Asia, as orações de Ashiq foram respondidas. Contra as expectativas de milhares de muçulmanos conservadores, a Suprema Corte do país revogou sentença anterior por falta de provas e permitiu que Asia Bibi fosse libertada.

Em poucas horas, indignados com a decisão histórica, manifestantes tomaram as ruas exigindo a morte de Asia Bibi. Por três dias consecutivos, os manifestantes tentaram submeter o governo e a nação à sua vontade.

As principais estradas foram bloqueadas, carros e ônibus foram incendiados, pedágios, saqueados e policiais acabaram atacados pela multidão. Particularmente na província oriental de Punjab, muitos escritórios, empresas e até mesmo escolas foram forçados a fechar as portas.

O país assistiu às cenas de violência com horror enquanto o governo pouco aparecia. No início, o primeiro-ministro Imran Khan, em um discurso na televisão, emitiu uma advertência aos manifestantes, dizendo para eles não “entrarem em conflito com o Estado”. Mas depois de três dias de caos crescente, o governo disse que, para evitar qualquer derramamento de sangue, eles fariam um acordo com os líderes da revolta.

Imediatamente após a libertação da Asia, o líder religioso Khadim Hussain Rizvi e seu partido político de extrema-direita Tehreek-e-Labbaik Pakistan (TLP) usaram as mídias sociais para defender a desordem civil e a violência.

Rizvi e seus partidários pediram que os juízes que absolveram Asia fossem mortos e encorajaram um motim entre os militares, declarando que o chefe do Exército era um apóstata – ou seja, ele teria renunciado ao islamismo.

O líder também conseguiu apoio fora do círculo de seu partido. Vídeos nas redes sociais convocaram mais protestos, levando às ruas milhares de pessoas de diferentes segmentos sociais do Paquistão.

Rizvi também acusou o Ocidente de encorajar a blasfêmia contra o Islã e seu profeta Maomé. Em um de seus tuítes, ele disse que as pessoas deliberadamente cometiam blasfêmia para conseguir dinheiro e receber asilo dos países ocidentais.

Em outubro, depois de três dias de demonstrações de força do TLP em todo o Paquistão, o governo cedeu: concordou em não se opor a uma petição para um novo julgamento de Asia e a proibiu de deixar o país.

A petição foi promulgada e os protestos cederam. Asia foi libertada da prisão, mas foi levada sob custódia protetiva. Ainda demorou três meses para ela ser finalmente posta em liberdade.

Inomanahmad / Wikimedia

Khadim Hussain Rizvi

 

O líder conservador e o político liberal

Poucos anos antes, Khadim Hussain Rizvi não tinha tanta influência, pois trabalhava como clérigo em uma pequena mesquita local. Apesar de trabalhar para o governo, era tido como uma figura marginal. Mas ele começou a chamar a atenção por seus sermões controversos.

Enquanto fazia sua orações, Khadim Hussain Rizvi frequentemente glorificava o assassinato de Salman Taseer, um proeminente político paquistanês que chegou a ser ministro das Indústrias e governador da província de Punjab.

Ele acabou assassinado em 2011 por defender a liberdade de Asia e mudanças na legislação que prevê pena de morte por blasfêmia ao Islã. Como governador, Taseer visitou Asia Bibi na prisão de Sheikhupura em 2010. Em uma coletiva de imprensa na TV, com Asia sentada ao seu lado, Taseer apelou ao presidente do Paquistão para perdoá-la.

Algumas semanas depois, em um dia frio de janeiro, Taseer foi assassinado por seu próprio segurança. No meio do movimentado mercado de Kohsaar, em Islamabad, Malik Mumtaz Hussain Qadri, um jovem policial, atirou no governador à queima-roupa, 27 vezes.

Qadri se tornou um herói para milhões de muçulmanos conservadores. Logo depois do crime, ele se entregou à polícia, mas disse não ter qualquer arrependimento – estava cumprindo um “dever religioso”, disse. “A punição para a blasfêmia é a morte“, afirmou aos policiais.

Em seu julgamento, que foi realizado dias depois, Qadri foi aplaudido por centenas de fãs e regado com pétalas de rosa. Ele foi condenado à morte e executado em 2016.

Rizvi acabou sendo demitido de seu trabalho como clérigo por causa dos sermões que elogiavam Qadri como se ele fosse mártir. Então Rizvi se voltou para a política e fundou seu próprio partido, o TLP.

Meses depois de estabelecer o partido, os ativistas de Rizvi bloquearam uma rodovia principal, paralisando a capital Islamabad por 20 dias. Rizvi acusou o governo de blasfêmia depois que uma referência ao profeta Maomé foi deixada de fora de uma versão revisada do juramento eleitoral.

Assim, na eleição do ano passado, o até então pequeno partido populista, declarando-se defensor da honra de Maomé, atraiu mais de 2 milhões de votos. Ao longo da campanha, seus cartazes e faixas exibiam fotografias de Qadri, idolatrado como um mártir da causa religiosa.

Blasfêmia como crime

Nos últimos 30 anos, blasfêmia contra o profeta Maomé levava à pena de morte no Paquistão, mas ninguém havia sido executado. Há ao menos 1.549 casos conhecidos de pessoas acusadas por blasfêmia contra Maomé ou profanação do Alcorão, segundo o Centro Paquistanês de Justiça Social.

Desses casos, 75 pessoas acusadas por esses crimes foram assassinadas antes mesmo de serem julgadas. Muitas foram mortas sob custódia da polícia ou linchadas pela multidão. Um desses incidentes ocorreu quase perto da cidade de Lahore, no pequeno município de Kot Radha Kishan, nome em homenagem a dois deuses hindus.

Na região, os campos são verdes e exuberantes. A cada 800 metros em todas as direções, estão as altas chaminés fumegantes dos fornos de tijolos. Em cada um, centenas de blocos são empilhados em fileiras. Foi em um desses fornos que Shahzad e Shama Maseeh, um casal cristão acusado de blasfêmia, foi queimado vivo por uma multidão, em 2014.

O jornalista local Rana Khalid relembra os eventos que levaram aos assassinatos. Ele aponta para uma pequena estrutura perto do forno de tijolos. “O casal estava trancado nessa sala se protegendo da multidão”, ele conta.

Liderada por um clérigo local, a multidão estava furiosa: vários membros subiram no telhado e abriram caminho pelo teto. O casal foi arrastado para fora. “Eles foram brutalmente espancados com paus e tijolos e arrastados pelos homens raivosos da aldeia até o forno de tijolos e jogados lá dentro”, descreve o jornalista.

Shama estava grávida de quatro meses.

A multidão acreditava que um dia antes Shahzad e Shama haviam queimado várias páginas do Alcorão, junto com o lixo. A família do casal nega, dizendo que eles estavam queimando documentos antigos.

Cinco pessoas da aldeia, incluindo o clérigo local, foram condenadas à morte por terem assassinado o casal cristão. Outros oito moradores foram condenados a dois anos de prisão por incitar a violência.

 

Pena de morte

A lei paquistanesa contra a blasfêmia ficou mais severa na década de 1980, em um cenário de crescente polarização no país. Em 1979, o Paquistão era aliado dos americanos quando o vizinho Afeganistão foi invadido pela União Soviética e os Estados Unidos iniciaram operações secretas para ajudar combates islâmicos.

O país teve ganhos econômicos significativos por sua participação na jihad afegã, mas acabou impulsionando fanatismo religioso. Durante a década seguinte, a influência política e social dos grupos religiosos radicais aumentou dramaticamente.

Eles ganharam visibilidade e voz. O Estado promoveu abertamente a ideologia islâmica ultraconservadora Wahhabi, sob liderança do general Zia ul-Haq, presidente do país entre 1978 e 1988.

Leis foram promulgadas e adaptadas para reforçar a chamada sharia (legislação islâmica) e fazer do Paquistão uma nação “verdadeiramente islâmica”. Nesse contexto, as regras sobre blasfêmia foram alteradas pelo Parlamento em 1986.

Originalmente, uma legislação que respeitava diferenças religiosas havia sido criada pelos britânicos em 1860. O objetivo era conter conflitos religiosos entre hindus, muçulmanos, cristãos e siques em toda a Índia governada pelo Reino Unido na época.

A lei protegia locais de culto e objetos sagrados e tornava crime perturbar assembleias religiosas, invadir locais de sepultamento e insultar crenças de qualquer pessoa. Os infratores eram punidos com até dez anos de prisão. Em 1927, durante uma tensão política e antagonismo entre diferentes comunidades, a lei foi reforçada.

As leis de blasfêmia não favoreciam nenhuma religião específica até 1986, quando o Parlamento paquistanês introduziu novas emendas e incluiu uma cláusula que punia com a morte quem ofendesse o profeta Maomé. Na votação, apenas um parlamentar se posicionou contra a cláusula 295-C. Seu nome é Muhammad Hamza, hoje com 90 anos.

Em seu discurso em 1986, Hamza argumentou que os textos islâmicos citados pelos defensores da pena de morte precisavam ser exaustivamente revisados ​​pelos estudiosos da religião antes que qualquer mudança na lei fosse aprovada, e alegou que o Parlamento estava sendo irresponsável, evitando um debate profundo sobre o assunto.

“Tenho uma opinião firme”, diz Hamza. “Você não pode administrar o país com justiça seletiva. Qual é o propósito da lei se ela é destrutiva para a sociedade? Nossa população não tem profundidade, é excessivamente emocional sobre religião, então eu sabia que a lei seria mal utilizada – é por isso que eu me opus“, completa.

Hamza era a única voz da oposição no Parlamento naquele dia. A cláusula 295-C foi aprovada imediatamente.

// BBC

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