Todos os dias, aproximadamente 5 milhões de pessoas usam o Metrô de São Paulo. O rosto de cada uma dessas pessoas pode ter sido gravado num sistema de reconhecimento facial que está em uso desde o início de 2020.
Em 23 de março, a 6ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo ordenou a suspensão do uso da tecnologia pela Companhia do Metropolitano de São Paulo, órgão que administra o Metrô.
O órgão recorreu da decisão, alegando que o seu sistema de monitoramento “obedece rigorosamente à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)”, mas o argumento foi rejeitado pelo mesmo tribunal em meados de abril.
A decisão é considerada uma vitória para um grupo de entidades da sociedade civil que ajuizou a ação civil pública para impedir essa coleta de dados, algo que consideram inconstitucional e em desacordo com o marco legal brasileiro sobre os direitos civis digitais.
No início de março de 2022, esse grupo ajuizou uma ação civil pública contra o Metrô de São Paulo, exigindo o fim da coleta de dados e o paguamento de indenização por danos morais coletivos, com valor mínimo de R$ 42 milhões.
Mas, o grupo tem aspirações que vão além das malhas viárias do Metrô de São Paulo. Eles se esforçam para desempenhar um papel na formação de jurisprudência sobre tecnologias de reconhecimento facial em um país cujo marco legal diz pouco ou nada sobre esses sistemas.
“Essa decisão pode ter um impacto nacional no debate atual sobre a forma como a LGPD está sendo aplicada, sobre o marco legal para a proteção de dados, o que ainda é recente, e sobre o processo de formar jurisprudência e entendimentos no Judiciário”, explicou Sheila de Carvalho, coordenadora do Centro de Referência Legal da Article 19 Brasil e América do Sul.
A Article 19 é uma das organizações que assinaram a ação judicial, em conjunto com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo; Defensoria Pública Federal; Instituto Brasileiro de Defesa do consumidor (Idec); Intervozes (Coletivo Brasil de Comunicação Social) e Coletivo de Advogados de Direitos Humanos (CADHu).
Carvalho explicou que o objetivo principal da ação é despertar o debate sobre como lidar com dados pessoais, a necessidade de consentimento, o impacto discriminatório e as discriminações sociais destes métodos de coleta de dados.
“Essa ação [incluindo os argumentos que nela constam] abre caminho para estabelecermos parâmetros de proteção mais rígidos com relação ao uso de dados pessoais”, disse a advogada à Global Voices durante uma entrevista em vídeo.
Nos últimos anos, parlamentares propuseram projetos de lei que visam regular e definir procedimentos para a implementação de inteligência artificial, principalmente no que diz respeito à segurança pública. O Senado, entretanto, vem realizando debates com especialistas na esperança de obter um novo projeto de lei com maior conscientização das questões de privacidade para absorver outras proposições existentes sobre o tema.
Em fevereiro de 2020, o Metrô de São Paulo anunciou que implementaria um “sistema de monitoramento eletrônico por imagens” em três de suas cinco linhas. O projeto foi concedido ao consórcio Engie Ineo Johnson, formado por empresas irlandesas e francesas, com um investimento estimado de R$ 58,6 milhões.
Na época, uma coalizão de entidades da sociedade civil, as mesmas que ajuizaram a ação civil pública, foi à Justiça para obter mais informações sobre o sistema. Queriam saber como a iniciativa se alinharia aos princípios estabelecidos pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), aprovada em 2018 e que entraria em vigor em agosto de 2020.
Dois anos depois, essa pergunta foi respondida. De acordo com os órgãos responsáveis pelo processo, o sistema viola reiteradamente a LGPD e contraria outros mecanismos legais, tais como a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor.
O processo alega que a Companhia do Metropolitano de São Paulo utiliza tecnologia de reconhecimento facial em passegeiros e usa seus dados pessoais sem consentimento nem com a devida transparência, além de não disponibilizar aos usuários informações sobre como os dados são utilizados e manipulados.
Ainda apontam que a empresa não avaliou o risco do programa nem mitigou os problemas inerentes às tecnologias de reconhecimento facial, conforme exigido por lei. Além disso, suas práticas de reconhecimento facial violam direitos fundamentais dos seres humanos e do consumidor, o que prejudica todos os usuários de transporte público, particularmente grupos sociais marginalizados, que seriam afetados por preconceitos raciais incorporados.
Indo contra a maré
Nos Estados Unidos, alguns lugares estão se mobilizando para banir o reconhecimento facial nos níveis estadual e municipal, enquanto outros normalizam cada vez mais o emprego dessa tecnologia, informa a Wired. Esse paradoxo destaca a importância da regulamentação no âmbito federal.
O Parlamento Europeu está pedindo a proibição do uso de tecnologia de reconhecimento facial pela polícia em locais públicos, em bancos de dados privados de reconhecimento facial e no policiamento preditivo.
Mas, o Brasil parece estar nadando contra a maré. O Metrô de São Paulo não é a única entidade pública a recorrer ao reconhecimento facial. Em todo o país, os governos estaduais estão implementando a tecnologia em vários setores. Segundo o Instituto Igarapé, um think tank brasileiro independente, em 2019, havia 47 casos de implementação de reconhecimento facial em 15 estados.
Isso é especialmente problemático em um país onde 56,1% da população se autodeclara negra. Fica evidente na Bahia, onde o governo de esquerda de Rui Costa, político do Partido dos Trabalhadores, está transformando o estado em um “laboratório de reconhecimento facial”, conforme noticiado pelo The Intercept Brasil.
Apesar de haver poucas evidências de que tal sistema seja eficaz para fins de segurança pública, em julho de 2021, o governo da Bahia decidiu expandir o programa testando um novo sistema na capital do estado, Salvador.
Avaliado em R$ 18 milhões, o novo sistema é fornecido pela empresa espanhola Iecisa em parcecria com a Huawei. Câmeras espalhadas pela cidade coletarão identificações de rostos e os arquivarão em um sistema, agrupando imagens da mesma pessoa. O sistema, de acordo com o Intercept, também utiliza inteligência artificial para cruzar as imagens coletadas com rostos de pessoas procuradas que estão no banco de dados da Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública.
De acordo com agentes da sociedade civil, o Brasil ainda não dispõe de um marco legal que estabeleça limites e parâmetros para o uso de tecnologias de reconhecimento facial.
“O que existe hoje é a ausência de uma regulamentação ou diretriz de abrangência geral, resultando na autorização implícita do uso de sistemas de reconhecimento facial”, relatou a Igarapé num relatório em 2020.
Na comunidade internacional, já existe uma compreensão mais consolidada dessa questão, o que serviu de argumentos no processo. A Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos, por exemplo, admite que ferramentas de reconhecimento facial podem ser usadas para “perpetuar e amplificar a discriminação”, principalmente contra mulheres e pessoas de cor.
O fato de que o Brasil não possui um marco legal consolidado, entretanto, não é pretexto para abusos e violações. Os grupos da sociedade civil que ajuizaram a ação contra o Metrô de São Paulo argumentam que os dados coletados nas estações de metrô e trens estão sendo comercializados de maneira ilegal.
A hipótese tem fundamento: em 2021, a ViaQuatro, empresa privada que administra uma das linhas privatizadas do Metrô de São Paulo, foi condenada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo por usar reconhecimento facial sem autorização.
Na ocasião, a juíza declarou não ter dúvidas de que as imagens de passageiros estavam sendo coletadas sem consentimento para fins comerciais, beneficiando a empresa e as outras terceirizadas envolvidas.
“Estamos importando tecnologia de uma forma bastante inconsciente, apenas reproduzindo o que está em prática. E ainda assim uma reprodução imperfeita, considerando que a maioria destes países tem abandonado tais tecnologias. Entretanto, estes países precisam vender as tecnologias, que são extremamente onerosas, e assim se aproveitam de países com os altos índices de desigualdade”, explicou Carvalho.
O Brasil opera sob uma lógica de encarceramento em massa, de criminalização, sendo incapaz de utilizar o direito penal com parcimônia para conflitos que realmente o exigem, acrescenta.
“Nós usamos como um primeiro recurso, e não como último. Então, é mais permissivo que mecanismos como esses, que violam direitos, encontrem espaço para florescer dentro de nosso país.”