Se você tirar o laranja da história da arte, tudo desaba. O céu na obra O Grito, de Edwaed Munch, se desfaz, e o grande fogo que acende o famoso Junho Flamejante, de Frederic Leighton, se apaga.
Se você tirar o laranja, tudo some, desde o brilho eterno e quente das pinturas das tumbas egípcias até a barba ruiva e flamejante dos autorretratos de Vincent van Gogh.
Um árbitro sagaz entre o decisivo vermelho e o implacável amarelo, o laranja é um pigmento com um papel pivô. É a dobradura de uma tonalidade que permite que uma obra de arte oscile entre estados contraditórios da existência – este mundo e outro, vida e morte.
Além da moldura da história da arte, o laranja se mostrou um símbolo elástico pouco comum, florescendo em um espectro de formas e significados culturais. Apesar da influente Casa Real Orange (“laranja”, em inglês) dizer que seu nome vem muito antes daquele dado à cor em 1540, seu ilustre filho William 3º, mais conhecido como William de Orange, rapidamente abraçou a coincidência linguística em 1570.
Sua rebelde obra laranja, azul e branca acabou sendo a vencedora do concurso da bandeira moderna da Holanda. A partir daí, o laranja tomou as cores de tudo desde os motores suíços até as roupas usadas pelos astronautas na Estação Espacial Internacional. Mas foi no reino da arte e da estética que a cor deu mais frutos.
Desde a antiguidade até o fim do século 19, um mineral vulcânico encontrado em fumarolas sulfúricas, gases que saem da crosta terrestre, era uma fonte importante para a composição do pigmento laranja.
O ouro-pigmento é altamente tóxico, rico em arsênio letal e passa de um suave amarelo para um laranja vivo quando submetido ao calor do fogo. Seu nome é uma contração da palavra em latim aurum, que significa ouro, e pigmentum, que significa cor, e também é chamada de auripigmento.
Convencido de que o brilho luminoso do ouro-pigmento deveria ser um ingrediente chave no preparo da Pedra Filosofal, durante séculos alquimistas arriscaram a vida se expondo à substância nociva. Assim como os artistas.
Explorar o oculto do laranja significava flertar com a mortalidade e a imortalidade na mesma medida.
Da faísca à chama
Intencionalmente ou não, essa aura ambígua é irrepreensível quando quer que o laranja seja usado na arte. Por exemplo, o pintor francês rococó Jean-Honoré Fragonard e seu retrato de um escritor genérico em um momento de visão intensa: Inspiração, pintada em cerca de 1769.
O casaco de veludo laranja – seus amassados vibrantes cintilando como chamas – ameaça engolfar a personagem alegórica de um poeta cuja imaginação acabou de ser acesa. Os sulcos de veludo se tornaram uma reflexão externa da mente do escritor.
Esse momento de devaneio que ilumina o indivíduo, como se fosse a partir de sua alma, vai ou garantir sua fama eterna como um trovador celebrado ou colocará seu próprio ser em chamas. Se você o vestir em qualquer outra cor senão o laranja, o poder da obra será perdido.
Nem é possível imaginar o Autorretrato com Auréola e Cobra, pintado pelo artista pós-impressionista Paul Gauguin mais de um século após o quadro de Fragonard, mergulhado em dois tons de laranja que dominam e dividem sua superfície radiante em territórios em competição de piedade e malevolência.
Criado por Gauguin enquanto ele vivia na vila de pescadores Le Pouldu, no noroeste da França, a obra traz na metade de cima uma indiferença sagrada às tentações humanas, simbolizada pelas frutas proibidas penduradas.
Para garantir que não perdêssemos o ponto imperdível, o artista se coroou nesse hemisfério da obra com uma auréola angelical. A parte de baixo desse painel de madeira, porém, revela uma suscetibilidade insustentável ao mal já que a cobra sedutora do Jardim do Éden está enrolada no dedo proverbial do artista.
Amarrar a obra em termos de tom envolve uma mudança dramática no equador das sombras de laranja – não diferentemente do próprio ouro-pimenta, antes e depois de seu batismo purificador por meio do fogo.
E assim vai, obra por obra, século atrás de século: onde quer que a cor laranja dite a temperatura de uma obra de arte, sabemos que estamos diante de um sertão entre um universo que podemos ver e um desconhecido misterioso que sentimos com cautela.
Como mais você caracterizaria o reino onde a fase liquefeita do herói de Munch grita sob um céu estranho cor de canela no trabalho O Grito? De que outra maneira você descreveria o espaço eterno das mulheres da obra icônica A Dança, de Henri Matisse?
// BBC