Os agroexportadores americanos ADM e Cargill compram soja de empresas ou produtores ligados a pelo menos sete casos de violação dos direitos humanos contra grupos indígenas e comunidades camponesas no leste do Paraguai.
A organização de direitos humanos e ambientais Global Witness constatou que a soja vinculada aos casos de envenenamento por conta de pesticidas, despejo forçado de povos indígenas, e até mesmo mortes, está misturada nos silos das agroexportadoras, principalmente da ADM e da Cargill.
De acordo com um novo relatório da organização de direitos humanos e ambientais Global Witness, essas empresas então transferem a soja por meio de barcas para seus portos na Argentina e no Uruguai.
De lá, ela é transportada para o destino final: duas fazendas na Europa, uma de criação de frangos na Inglaterra (2 Sisters) e uma outra de criação de porcos na Dinamarca (Danish Crown).
Ambas fornecem carne para mais de 26 marcas europeias e supermercados, incluindo Carrefour, KFC e McDonald’s.
Envenenamento e despejos para vender soja na Europa
A ADM, por exemplo, compra soja de uma empresa acusada de realizar pulverização ilegal com agrotóxicos, operar sem licenças ambientais e despejar pesticidas nas hidrovias na área de Colonia Yerutí, região leste do Paraguai.
Em 2011, um membro da comunidade dessa área, Rubén Portillo, morreu com sintomas de envenenamento por pesticidas, e outras 22 pessoas da comunidade acabaram hospitalizadas.
Em 2019, a Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas sentenciou o Estado Paraguaio. Ela concluiu que o Estado falhou na proteção do direito à vida de Portillo, sua família e de toda a Colonia Yerutí, além de não ter aplicado as leis de regulação de uso de pesticidas ou investigado as mortes e envenenamentos.
Esse foi o primeiro julgamento no mundo de um caso relacionado a agrotóxicos. Cóndor Agrícola, uma outra empresa citada no caso, também continua a operar na área.
Em 2021, o Paraguai recebeu uma outra recomendação da ONU relacionada a um caso similar, de um caso da comunidade Ava Guaraní de Campo Agua’e, também em Canindeyú.
Além de Yerutí e Campo Agua’e, a Global Witness identificou mais cinco casos em que, além de relatos de uso ilegal de agroquímicos, existem conflitos sobre a terra onde a soja vendida por agroexportadores é cultivada.
Ka’a Poty, uma comunidade indígena Ava Guaraní, sofreu dois despejos forçados em 2021, além de ter as casas e escola destruídas.
Uma mulher que estava grávida de oito meses perdeu o bebê devido à violência infligida durante um dos despejos. Tudo isso aconteceu apesar de a comunidade ter o título da terra e um processo julgado ao seu favor.
A comunidade tornou-se conhecida por viver durante oito meses nas ruas de Assunção antes de retornar a sua terra em junho de 2022. No entanto, as tensões com cultivadores de soja continuaram.
Em agosto, membros da comunidade fizeram um arrastão em uma das fazendas localizadas em terras que eles alegam ser propriedade deles. Eles supostamente ameaçaram, agrediram e atacaram moradores. Dezessete membros da comunidade envolvidos no incidente foram presos.
Em meio aos conflitos históricos, judiciais e políticos, a Cargill e a ADM compram soja de produtores que operam nas terras reivindicadas pela comunidade Ka’a Poty.
Um negócio obscuro
A Global Witness verificou que a soja paraguaia da ADM e da Cargill é comprada na Europa por ao menos duas das grandes fazendas do continente: 2 Sisters, uma empresa de avicultura inglesa; e a Danish Crown, uma empresa de suinocultura dinamarquesa.
A organização confirmou que elas fornecem suprimentos para cerca de 26 marcas, supermercados e revendedores na Europa, incluindo KFC, Lidl, Carrefour, Marks e Spencer e McDonald’s.
A cadeia de suprimento de soja é complexa. “É uma indústria extremamente obscura”, observa a Global Witness no seu relatório.
A organização tentou contatar todas as empresas citadas no relatório antes de publicá-lo, desde produtores de soja no Paraguai até compradores na Europa. Muitos deles não quiseram se manifestar. Entre os que se pronunciaram, nenhum, exceto a ADM, negou as descobertas.
A obscuridade na cadeia de suprimento torna impossível determinar se a soja cultivada em Yerutí acaba sendo utilizada especificamente na criação de frangos e porcos da Danish Crown ou 2 Sisters que fornecem carne para o McDonald’s, por exemplo. Contudo, é a mesma obscuridade que coloca todas as empresas da cadeia de suprimento em risco de cumplicidade.
“Se esse for o caso, todas as empresas mencionadas neste relatório estão diretamente ligadas a violações de direitos humanos que afetam comunidades indígenas e camponesas do Paraguai”, o relatório afirma.
Elas estariam violando padrões internacionais de negócio, tais como os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos (2011) e as diretrizes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre responsabilidade corporativa no desenvolvimento e devida diligência, isso é, elas são responsáveis por prevenir e agir em casos de violações de direitos humanos executadas por seus fornecedores.
Elas violariam também o princípio do consentimento livre, prévio e informado que é um aspecto fundamental da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007) que o Paraguai tem aplicado em sua legislação desde 2018.
A mera suspeita de que a soja de Yerutí ou Ka’a Poty poderia estar ligada a carne europeia já demonstra a falha de processos de responsabilidade autorregulados de empresas europeias.
“Através da própria negligência, corporações europeias, ao lado de mercadores, têm contribuído por anos para ocorrência de violações tais como aquelas que documentamos no Paraguai”, observam os pesquisadores.
Consultado pela Global Witness sobre as descobertas da investigação, Marcos Orellana, relator da ONU sobre substâncias tóxicas e direitos humanos, alertou que por causa dos produtores que não cumprem com a lei, o Paraguai “está em risco de ser isolado do mercado internacional, dada a crescente tendência para garantir que a cadeia de suprimentos cumpra com requisitos ambientais e de direitos humanos”.