“Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti”. O Salmo 91 “salvou” a vida do ex-presidiário Sidney Sales durante o massacre do Carandiru, o presídio que há 25 anos viveu o capítulo mais sombrio da história do sistema penitenciário brasileiro.
Em 2 de outubro de 1992, o Brasil registrou seu maior massacre carcerário quando 111 presos foram assassinados pela polícia em uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru. Naquele dia, Sidney Sales, que cumpria pena por roubo de carga, sobreviveu “graças a um milagre de Deus”.
Os agentes da polícia já tinham disparado contra dezenas de presos e quando chegaram à sua cela (504-E, no pavilhão 9), Sales recitou os versículos do Salmo 91, que sua mãe lhe escreveu em uma carta: “Foi então quando o policial chutou a porta e pediu que todos nós saíssemos nus”.
Sales – hoje pastor evangélico – escapou da morte pela primeira vez naquela tarde de outubro de 1992 e desceu até o pátio para carregar os corpos dos seus companheiros.
Pelo massacre, 73 policiais foram condenados em cinco processos diferentes, julgados entre 2013 e 2014, mas um tribunal anulou no ano passado todo o procedimento porque considerou que não foi possível responsabilizar de forma individual os autores de cada uma das mortes.
“A lei humana demorou, mas a lei divina fez o seu trabalho rápido”, afirmou Sales em entrevista à EFE no Parque da Juventude, onde, há 25 anos, funcionava o maior presídio da América Latina, que foi demolido em 2002.
Após recolher mais de 30 corpos, Sales voltou a se fechar em uma cela a pedido de um policial, e foi nesse momento que ocorreu o “segundo milagre” do Carandiru. “O policial estava com um molho de chaves e me disse: ‘Se a chave que você escolher abrir o cadeado, você vai sobreviver; se não, vai ser executado agora‘. Fechei os olhos e pensei na carta da minha mãe”, conta Sales.
O pastor, de 49 anos, deixou o presídio em 1993, um ano após o massacre: “Saí e a sociedade não me queria, mas eu tampouco queria a sociedade“. Voltou então ao mundo do crime e em um confronto levou seis tiros e ficou paraplégico. Começou então a usar drogas, retornou à prisão e no caminho encontrou o “chamado do Senhor”.
Sales já não tem pesadelos, mas durante anos acordava assustado com as tenebrosas imagens daquela tarde de 1992, retratada no filme “Carandiru”, dirigido por Héctor Babenco.
O estopim do massacre aconteceu enquanto os presos disputavam uma partida de futebol no pátio do pavilhão 9. Em uma das celas superiores, os detentos começaram uma briga e os agentes penitenciários tentaram controlar a situação, mas os presidiários conseguiram tomar o controle do prédio.
A polícia então reprimiu a rebelião com uma violência extrema, disparando contra os presos quando muitos deles estavam trancados em suas respectivas celas.
Após 25 anos do massacre, os sobreviventes do Carandiru e as organizações de direitos humanos concordam que pouco mudou no sistema penal brasileiro desde então. “Mudou muito pouco desde o Carandiru e algumas coisas pioraram desde 92“, como a presença dos grupos criminosos dentro das prisões, afirmou à EFE César Muñoz, pesquisador da Human Rights Watch (HRW).
Para Muñoz, “os grandes grupos criminosos foram fundados nas prisões como forma de autoproteção dos presos, mas se transformaram em organizações muito perigosas, que controlam território e cuja influência se transferiu para as cidades”. “Por isso é tão importante que o Estado retome o controle das prisões“, continuou.
As facções criminosas foram as protagonistas dos massacres realizados no início de 2017 em diversos presídios do Brasil e que deixaram um saldo de 150 vítimas.
A violência registrada nos primeiros meses do ano trouxe à tona a dura realidade dos presídios do Brasil, onde a aglomeração e as péssimas condições dos presos são alguns dos maiores problemas do sistema carcerário, que abriga cerca de 622 mil detentos, 67,3% acima da sua capacidade.
“A minha maior decepção é que o Estado continua à toa 25 anos depois. Por isso continua essa situação caótica nas prisões”, advertiu Sales, que hoje administra vários centros para dependentes químicos no estado de São Paulo.
Ciberia // EFE