Quinze meses após o aparecimento do coronavírus na América do Sul, três vizinhos do Brasil vivem hoje o pior momento da crise sanitária. Paradoxalmente, a estratégia permissiva do Uruguai e os confinamentos obrigatórios da Argentina produziram o mesmo resultado: junto com os paraguaios, uruguaios e argentinos registram atualmente as maiores taxas de mortalidade do mundo por Covid-19.
A prevalência da variante brasileira e o aumento da mobilidade podem explicar o agravamento da pandemia nessa região, segundo especialistas.
O Uruguai, depois de ocupar as manchetes internacionais por sua gestão exemplar da epidemia, passou a liderar o ranking de mortes por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias, com 22 óbitos, de acordo com dados contabilizados nesta quinta-feira (27) pela agência AFP, a partir de notificações oficiais. Atrás, estão Paraguai, com 19 mortos, e Argentina, com 15.
Colômbia, Brasil e Peru vêm na sequência desta lista. Para referência, os Estados Unidos registram atualmente 2,5 óbitos por 100 mil habitantes. A exceção é o Chile, onde há uma redução gradual de novos casos.
No Uruguai, “as pessoas não acreditam” na gravidade do vírus, lamenta o médico intensivista Francisco Domínguez.
“A gente observa isso nas ruas: quase ninguém usa máscara“, conta. “Enquanto a pessoa não tem um parente hospitalizado aqui, ela não se dá conta”, afirma Domínguez. Com 3,6 milhões de habitantes, o Uruguai apresenta hoje números “históricos” de internações em UTIs, confirma Julio Pontet, presidente da Sociedade Uruguaia de Medicina Intensiva.
A baixa percepção do risco no Uruguai pode ser explicada, em parte, por um período quase sem contaminações, enquanto no resto do mundo, e principalmente no Brasil, os números da pandemia explodiam. Além disso, para proteger a economia, o presidente Luis Lacalle Pou defende a “liberdade responsável” dos cidadãos e se recusou a confinar a população, apesar da pressão do sindicato médico e de setores da oposição e da sociedade civil.
O ritmo intenso de imunização – 28% da população uruguaia já foi completamente vacinada e 47% recebeu a primeira dose – ainda não se refletiu na curva de contágio e mortalidade, como está acontecendo no Chile.
A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) alertou, nesta quarta-feira (26), para o patamar “preocupante” de casos e mortes pela Covid-19 nas últimas semanas na região. Sylvain Aldighieri, gerente para a Covid-19 na OPAS, apontou que “a carga dos serviços, inclusive para pacientes graves e em unidades de terapia intensiva, ainda é muito alta na maioria dos países do Cone Sul”.
Ele ainda assinalou a pressão que “virá com o início do inverno, que historicamente coincide com o período das doenças respiratórias agudas”, e exortou as autoridades a aplicar e fiscalizar com rigor as medidas de saúde pública.
Cansaço na Argentina
O cansaço provocado por meses de restrições se faz notar na Argentina, após um 2020 de toques de recolher e lockdowns, alternados recentemente com períodos de flexibilização.
No sábado (22), o país iniciou nove dias de quarentena total para enfrentar o recrudescimento dos casos – uma média diária sem precedentes de 30 mil infecções e 500 mortes.
Comportamentos irresponsáveis, adoção tardia de restrições mais duras, falta de vacinas e as novas e mais agressivas variantes do vírus explicam a voracidade dessa nova onda, segundo Elisa Estenssoro, integrante do comitê de especialistas que assessora o governo de Alberto Fernández.
“Os hábitos da população não são consistentes: encontros sociais, gente sem máscara… Tem uma parte que cumpre e outra que nega ou se rebela”, comentou.
A infraestrutura de saúde está no limite. Em Neuquén (sudoeste), o hospital Heller, o maior da província, fechou as portas por falta de oxigênio. No hospital Durand, em Buenos Aires, há “falta de leitos e o pessoal está exausto”, contou o enfermeiro Héctor Ortiz. “Quando os leitos se liberam é devido a mortes e eles se reocupam”.
Na terça-feira (25), protestos convocados nas redes sociais ocorreram em várias cidades argentinas contra as restrições, que dividem um país que começava a dar sinais de reativação após três anos de recessão agravada pela pandemia.
Em relação à vacinação, cerca de 8,7 milhões dos 45 milhões de argentinos (menos de 20% da população) receberam a primeira dose e 2,4 milhões as duas doses, segundo dados oficiais.
Faltam insumos e vacinas no Paraguai
No Paraguai, os principais problemas são a falta de insumos e de doses de vacina para tratar os doentes. O governo de Mário Abdo Benitez estendeu o toque de recolher noturno até 7 de junho, mas a circulação durante o dia continua intensa.
“Hoje vivemos uma circulação comunitária alta, com pouca resposta sanitária, com falta de insumos e falta de vacinas”, lamentou o epidemiologista Tomás Mateo Balmelli.
Apenas 3% dos 7,3 milhões de paraguaios estão vacinados e as autoridades reconheceram em março 100% de ocupação das UTIs. Os pacientes “estão morrendo nos bancos ou leitos de hospitais, nos corredores (…) e em suas próprias casas”, afirmou o especialista.
Dezenas de pessoas se aglomeram nas entradas dos hospitais do país para acompanhar a evolução de seus familiares, sem poder entrar nos estabelecimentos.
Na semana passada, a enfermeira Elizabeth Marín se acorrentou na em frente à sede do Ministério da Saúde, em Assunção, para exigir um leito de terapia intensiva. “Tem que haver um lugar para meu pai. É seu direito”, disse a repórteres.
O vice-ministro Hernán Martínez prometeu conseguir uma vaga para ela, depois de pedir “um pouco de paciência”. Paciência que geralmente é letal.
// RFI