O matemático brasileiro Marcelo Disconzi havia encerrado um seminário na Universidade de Vanderbilt, no Tennessee (EUA), quando foi abordado por dois professores de Física da instituição.
Thomas Kephart e Robert Scherrer elogiaram o trabalho apresentado – a solução parcial de uma antiga equação -, mas a dupla tinha em mente um novo propósito para as teorias do brasileiro.
“Você já pensou em aplicar isso à cosmologia (estudo da origem e estrutura do Universo)?”, questionaram.
A pergunta pegou Marcelo Disconzi de surpresa. A apresentação, realizada em abril de 2014, jogava luz em um problema criado nos anos 1950 por Andre Lichnerowicz (1915-1998), um famoso matemático francês. Trazia uma solução, uma lógica, e só.
A equação de Lichnerowicz havia sido criada para tentar descrever o comportamento de fluidos viscosos viajando a velocidades relativísticas – comparáveis à velocidade da luz.
Quando encontrou a solução, Disconzi não pensou num efeito prático. Kephart e Scherrer propuseram uma questão: será que a viscosidade poderia impactar o Universo de alguma forma?
“Achei a ideia interessante, e passamos a nos encontrar com regularidade”, conta o brasileiro. Nas primeiras reuniões, ele explicou os detalhes da solução. Depois, o trio aplicou a equação a alguns cenários. O resultado veio no ano seguinte, num estudo que rodou o mundo.
A novidade trouxe à tona a possibilidade natural do Big Rip – ou “grande ruptura” -, uma das principais teorias sobre o fim do mundo. Trata-se de um Big Bang – teoria que aponta que o Universo começou com uma grande explosão – ao contrário.
A ideia propõe que, daqui a exatos 22,8 bilhões de anos, o Universo estará tão acelerado e disperso que os átomos que formam planetas e galáxias começarão a se desintegrar.
A teoria do Big Rip surgiu em 2003, mas todas as tentativas de determinar quando o Universo seria rasgado eram inconsistentes.
Cientistas que se aventuravam a estudar a propagação de fluidos viscosos, ou de energia escura (forma de energia que acelera a expansão do Universo), chegavam a um ponto em que, para que o rasgo acontecesse, essas matérias precisariam viajar a uma velocidade superior a da luz.
Só que nada viaja mais rápido do que a velocidade da luz. Faltava algo mais consistente para corroborar a teoria.
O estudo de Disconzi, publicado originalmente na revista Physical Review D, sugeriu um modo natural, e verossímil, desse fenômeno.
“O que era uma ideia puramente teórica agora é muito mais provável que corresponda à realidade física”, explica Kephart, que pesquisou o tema com o brasileiro.
Paixão por equações
Disconzi, de 37 anos, é um sujeito afável de estatura baixa, cabeça raspada e olhos cor de mel. Casou-se com a porto-riquenha Alexandra Valdés, de 35 anos, uma professora de Ciências e Biologia. Os dois moram em Nashville (EUA), cidade onde, desde 2014, ele ocupa o cargo de professor assistente de Matemática da Universidade de Vanderblit.
O professor nasceu em Porto Alegre, mas ainda criança foi morar com a família em Montenegro, no interior do Rio Grande do Sul. Voltou à capital gaúcha em 1998 para ingressar na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“Sempre gostei de questões profundas, que envolvessem pensamento crítico”, relembra. A escolha, porém, não lhe agradou. No semestre seguinte, Disconzi pediu transferência para o curso de Física.
A faculdade despertou nele uma paixão por pensamentos abstratos, cálculos e equações. Quando se formou, aproveitou para emendar dois mestrados na UFRGS: um em Física e outro em Matemática, ambos concluídos em 2005.
Ao retirar os títulos, Disconzi percebeu que se considerava mais matemático do que físico.
Ele já estava com o doutorado engatilhado na Universidade da Pensilvânia quando conheceu Dennis Sullivan, professor do Institute for Mathematical Sciences, centro de excelência em pesquisa matemática da Universidade de Stony Brook, em Nova York. De lá, saíram três medalhistas do Fields, popularmente considerado o “Nobel da Matemática”.
“Ele (Sullivan) me contou sobre a tradição de Stony Brook, especialmente em equações diferenciais parciais, área que estudo. Daí topei trocar de instituição”, sintetiza Disconzi. Após virar PhD, ele conseguiu lugar no pós-doutorado em Vanderbilt e, posteriormente, uma vaga como professor assistente.
Sempre vestido com jeans e camisa, ele chega à faculdade por volta de 7h30. A cafeteira é a primeira coisa que liga quando entra em sua sala – às vezes até mesmo antes das lâmpadas.
Com 14 metros quadrados, o ambiente é retangular, com paredes cor de creme, quadro negro, mesa e uma estante em L com cerca de 400 livros. Também há computador, cadeiras e uma confortável poltrona ocre. Tudo é milimetricamente organizado e limpo.
Como as aulas só ocorrem no primeiro horário das segundas, quartas e sextas-feiras, Disconzi passa praticamente o dia todo ali. Revisa lições, atualiza o próprio site, organiza eventos (seminários e congressos) e, claro, faz pesquisa. Várias, por sinal. O Big Rip é apenas a ponta do seu iceberg de seus estudos.
Singularidade matemática
Desde o doutorado, Disconzi se dedica às equações diferenciais parciais. Elas servem para descrever comportamentos (ou processos geométricos) por meio de diferentes taxas de variação física.
Por exemplo: numa previsão meteorológica, é necessário equacionar no mesmo problema diferentes taxas de variação física – pressão atmosférica, velocidade do vento, temperatura, umidade e assim por diante.
Contudo, nem toda a equação desperta interesse ou possui um objetivo claro.
Quando matemáticos falam em resolver uma equação, geralmente querem “provar” que existem soluções, e não que haja uma fórmula específica para tal. Não raramente, os resultados ficam limitados a cenários muito específicos.
Imagine o seguinte: os cientistas encontram evidências de que existiu vida em Marte. A descoberta seria o equivalente a provar a existência de uma solução – é uma afirmação ampla, geral, que não descreve detalhes do objeto.
Referendar o organismo vivo que teria vivido por lá, com descrições particulares – se uni ou pluricelular, aquático ou não, inteligente ou não – seria como escrever a fórmula da solução.
A lógica ocorreu com a teoria da relatividade geral de Albert Einstein, cujas equações foram criadas pelo físico em 1915 sob critérios gerais. Nos anos seguintes, a equação foi solucionada de forma fracionada, por partes, em condições particulares.
A união dos resultados em um teorema geral – ou seja, a fórmula da solução – só apareceu na década de 1950.
Na mesma época, o francês Andre Lichnerowicz montou equações diferenciais parciais para descrever fluidos viscosos no contexto da relatividade geral. Foi esse problema que Disconzi solucionou parcialmente, dois anos atrás, e apresentou como um recém-contratado professor assistente da Universidade de Vanderbilt.
“O que descobri pode ser considerado intermediário. Está entre o particular e o geral”, explica. A fórmula era mais valiosa do que ele imaginava.
Fluidos viscosos
Pensar em um contêiner cheio d’água ajuda a compreender a conexão entre a solução das equações de Lichnerowicz, descoberta por Disconzi, e a cosmologia.
A água é feita de moléculas. Nela, existem regiões com mais matéria (as moléculas) e regiões mais vazias (o espaço entre as moléculas). Do ponto de vista macroscópico, a água não é vista como um agregado de moléculas, mas como um fluido distribuído de forma homogênea (sem espaços entre uma parte e outra).
Do ponto de vista cosmológico, o contêiner representa o Universo e a água, a energia contida nele. As galáxias são as moléculas de água. Assim, em vez de pensar o Universo como um aglomerado de galáxias, os astrônomos passaram a entendê-lo como uma distribuição homogênea de matéria e energia.
“O ponto crucial é que essa distribuição se comporta como se fosse um fluido enchendo o Universo”, explica Disconzi.
“Isso nos dá a certeza de que o Universo está em expansão – e de forma acelerada.”
Essa expansão, segundo ele, tende a ficar cada vez mais veloz com o passar do tempo, em virtude da energia emitida por corpos celestes – que aumentam, assim, a viscosidade do Universo.
A combinação de distribuição de energia e aumento da viscosidade produzirá uma pressão negativa. Na relatividade geral, o efeito de uma pressão negativa é gerar uma força que se opõe à força gravitacional. Dessa forma, as galáxias tendem a se separar, e os planetas ficarão mais e mais distantes uns dos outros.
No final, projetado para daqui a 22,8 bilhões de anos, tudo será rasgado em pedaços.
“Esse comportamento incomum é o Big Rip, produzido por uma taxa de expansão infinita em um tempo finito”, diz Robert Scherrer, coautor do estudo.
Ainda há muito a responder sobre a tese – um novo estudo do trio já está em análise para publicação em uma revista científica. Pesquisadores de uma universidade italiana também estão debruçados sobre o objeto desde a primeira descoberta.
Futuro em Vanderbilt
Quando não lê na escrivaninha ou rabisca o quadro, é na poltrona ao lado da estante que Disconzi desenvolve seus estudos.
“As pessoas tendem a achar que meu trabalho, por ser um matemático, é só fazer cálculos”, ele diz, demonstrando um leve ressentimento.
“Na verdade, meu trabalho é construir argumentações lógicas para as equações, tendo uma pergunta perfeita como ponto de partida. ‘Sobre quais hipóteses a equação pode ter solução?'”, ilustra.
Disconzi visita pouco o Brasil. Em média, vai a cada dois anos – embora já tenham se completado três anos desde a última vez em que pôs os pés no país. Geralmente a incursão começa pelo Rio de Janeiro, onde mora uma irmã. Depois, vai a Porto Alegre e a Montenegro para visitar o restante da família.
No Tennessee, o professor de Vanderbilt mora com a esposa e uma gata, Kaya – diminutivo que homenageia a russa Sofia Kovalevskaya, uma das primeiras matemáticas de renome, falecida em 1891.
Em casa, Disconzi mantém alguns hábitos típicos dos gaúchos. Toma chimarrão com frequência, com erva mate comprada na internet. Churrasco? Só em restaurante brasileiro. “Em casa faço o americano”, ri, reconhecendo em seguida que assar hambúrguer na grelha está longe de um churrasco legítimo.
Para o futuro, Disconzi formula maneiras de escrever um livro em parceria com outros autores – David Sullivan, o professor de Stony Brook, é um deles. “Não existe um bom livro introdutório sobre equações diferenciais parciais. Tudo o que há foi escrito para especialistas, e os alunos ficam perdidos”, justifica.
A obra só virá caso seja admitido como professor titular, o que pode ocorrer em até cinco anos. Se efetivado, também gostaria de propor um programa de diversidade no Departamento de Matemática, semelhante ao que existe no de Física.
“Infelizmente, negros, latinos e mulheres ainda encontram muita desvantagem no meio educacional”, lamenta. Ele é único latino entre os 32 professores de Matemática em Vanderbilt.
O desfecho do mundo, afirma ele, seguirá em seu horizonte de pesquisas. “O nosso estudo sobre o Big Rip mostra o quanto ainda falta a gente entender sobre o Universo”, suspira. “Vamos seguir investigando.”
O prazo final, assim como o de todo o Universo, deve expirar em 22,8 bilhões de anos.
// BBC