Anorexia, um transtorno alimentar que pode levar à morte

Há mais de 20 anos Julia sofre de anorexia. Ela tem 1,60 metro de altura e pesa 42 quilos, o que para ela já é muito. “Nos meus períodos piores, em cheguei a 30 quilos.” Na verdade, ela só queria emagrecer um pouquinho, não se sentia bem com o próprio peso, apesar de, com seus 56 quilos, estar absolutamente dentro do normal.

A decisão foi tomada na noite de réveillon, uma espécie de promessa de Ano Novo. “Logo de cara, funcionou bastante bem: entre janeiro e maio, perdi seis quilos. A maioria de quem me conhecia achou que eu estava muito bem, mas que 50 quilos bastavam. Mas aí eu já não conseguia mais parar de emagrecer”, conta a ex-paciente, hoje com 41 anos.

Thomas Huber lida diariamente com esse tipo de problema, em seu trabalho na Klinik am Korso, uma clínica especializada em distúrbios alimentares na cidade Bad Oeynhausen, no oeste da Alemanha. “Os afetados costumam já ter chegado tão fundo na fase patológica, que não têm mais a menor motivação para mudar alguma coisa. E esse é, justamente, o perigo. Esses jovens resvalam cada vez mais fundo na anorexia, e abaixo de um certo peso, a doença pode realmente ameaçar a vida: cerca de 10% dos anoréxicos morrem da moléstia.”

A anorexia afeta 1,1% das garotas e mulheres e 0,3% dos meninos e homens, a maioria entre 14 e 16 anos de idade. Antes, pensava-se que sua causa era a vontade das jovens de parecer uma modelo ou de imitar alguma atriz, mas hoje se conhecem diversos outros motivos, como baixa autoestima, abuso sexual e bullying. Para quem entra na espiral da doença, em geral é quase impossível detê-la, e ela vai se agravando cada vez mais.

Sintomas crescentes

Após os primeiros meses da dieta, Julia perdeu peso cada vez mais rápido: em meados do ano, já pesava meros 40 quilos. Seu cardápio só continha vegetais crus, depois frutas, e por fim meio pãozinho pela manhã e outra metade à noite. Uma vez ou outra, excepcionalmente, um potinho de comida de bebê.

Na época com 21 anos, sua vida só girava em torno do emagrecimento. Ela se alegrava por cada quilo a menos na balança, ficava verdadeiramente orgulhosa de si, com uma espécie de bem-estar. Mas a certo ponto seu corpo deu sinal, protestando contra o tratamento radical: durante um passeio, subitamente sentiu uma perna dormente.

A mãe a levou a uma neurologista, e foi quando Julia escutou pela primeira vez o termo “anorexia”. “Aí fui a um especialista em distúrbios alimentares, que estabeleceu cardápios detalhados para mim. Eu achava que fosse me ajudar, mas não adiantou nada.” A jovem continuou perdendo peso, a tendência descendente era irrefreável.

Ela está convencida que sua anorexia não remonta a experiências drásticas na infância, pois cresceu bastante protegida. Já na escola, porém, apresentava uma autoestima muito baixa, sentindo sempre que era muito menor do que os demais. Isso ela não podia controlar, mas o queria ou não comer, sim: nesse aspecto, ela detinha sozinha o comando. E na primeira fase, não lhe estava claro que dano causava ao próprio corpo.

“Nosso corpo é programado para sobreviver, e economiza energia onde pode. Na anorexia, porém, em algum momento não se perde só gordura: o corpo lança mão de de tudo que possa fornecer alguma energia”, explica Huber. Até o tecido de órgãos importantes passa a ser consumido. “Quando se trata, por exemplo, do músculo cardíaco, as cápsulas adiposas em volta também podem ser danificadas. Os rins são outro exemplo. Além disso, não se produz mais tanto sangue e anticorpos, ficando-se mais vulnerável a infecções.”

O corpo de Julia também reagiu por não receber mais energia: a dormência na perna fora apenas um sinal de advertência. “Minha menstruação parou, e eu desenvolvi o que se chama ‘lanugo’. É como nos bebês, que só têm um pouco de penugem sobre a pele. Tive osteoporose, meus cabelos ficaram bem fininhos. E uma vez, nas férias com meus pais, fui nadar no mar e de repente vi tudo preto. Tive pânico de verdade.”

Medo do julgamento social

Os sintomas foram um toque de despertar para Julia: sentindo que precisava de ajuda, pela primeira vez procurou uma clínica psicossomática. Internações se sucederam: a primeira durou sete semanas, depois veio tratamento ambulante. No começo de 2004, mais três meses numa clínica; em novembro, outras sete semanas; três meses em 2006; dois em 2008; outras hospitalizações até 2010.

O tratamento nas clínicas costumava incluir medição de peso diária e alimentação assistida. Julia não podia nem conseguia mais decidir o que comer: simplesmente recebia o prato pronto. Mas quem sofre de distúrbio alimentar tem truques para ingerir menos calorias, explica: “Eles deixam talvez a manteiga de fora, ou raspam os grãos do pãozinho integral, que costumam conter bastante gordura; comem só a casca do pão, deixam o miolo.”

Sua vida girava exclusivamente em torno da anorexia. Todo o seu organismo funcionava em modo econômico, para consumir o mínimo possível de energia. Afastou-se dos amigos, tinha ataques de pânico e de depressão, o que a deixava sem iniciativa, sem vontade de fazer o que fosse, como encontrar-se com outras pessoas.

As depressões costumam ser acompanhadas por fobias sociais, envolvendo o medo do julgamento do grupo, explica Huber. “Concretamente, isso significa eu não ter coragem de me dirigir a estranhos. Se, por exemplo, sou novo num grupo, não tenho coragem de fazer contatos, prefiro ficar quieto no meu canto. Ou talvez tenha medo de fazer uma apresentação diante de toda a classe.”

Para Julia, foi uma época extremamente difícil. Após mais de 20 anos e todas as terapias, hoje ela pesa 42 quilos, tem dois filhos, ambos de peso normal. Contudo, “os distúrbios alimentares devem ficar para sempre sendo uma parte de mim”, constata.

“Coalhada magra e pera”

Alguns anoréxicos, contudo, conseguem superar a doença e voltar a desenvolver hábitos alimentares normais. Manuel é uma prova disso. Embora seja raro a anorexia acometer homens, até oito anos atrás o transtorno alimentar o tinha inteiramente em seu poder.

Hoje, o músico de de 31 anos procura ajudar outros: desde outubro de 2020, ele fala regularmente de seu distúrbio e suas experiências no podcast Magerquark & Birne (Coalhada magra e pera). O título se refere aos dois alimentos que, na fase mais severa, eram os únicos que ele consumia.

Começando quando Manuel tinha 19 anos, o distúrbio durou três anos e meio. Também ele tinha necessidade de controle, pelo menos sobre o que comia ou não. “Eu tinha a sensação de não saber muito bem onde estava na vida. Estava também com uma mania de poupança, e gastar pouco dinheiro também significa fazer poucas compras.” Outra consequência foi passar a comer cada vez menos, o que se transformou numa verdadeira compulsão para ele.

Ao longo dos anos, resvalou cada vez mais fundo na anorexia. Ela definia sua existência, ele passou a contar calorias, acabando por pesar apenas 57 quilos, com seu 1,80 metro de altura. “Eu sabia que a coisa não era normal, mas não me importava. Agora, tantos anos mais tarde, é como se eu falasse de outra pessoa, ou estivesse assistindo a um filme.”

O poder da amizade

Uma experiência-chave fez mudar sua vida: ele é um músico entusiasta, compõe suas próprias canções e toca guitarra numa banda, da qual também participa seu amigo. E, no fim das contas, foi este quem deu o impulso inicial para a saída da doença.

“Foi uma briga de verdade. ‘Isso não pode continuar assim’, o meu amigo disse, na época. Ele não conseguia mais suportar a coisa, ficar assistindo. Aí me ficou claro: se eu não mudar nada agora e procurar ajuda, vou perder tudo o que é significativo para mim, meu melhor camarada, a banda, a música.”

Manuel procurou uma central de aconselhamento e iniciou uma terapia centrada em distúrbios alimentares e alimentação em geral. “Achei uma terapeuta relativamente rápido. Muitas vezes também tinha que fazer deveres de casa, recuperar minha relação com a comida: como se avalia a comida corretamente? O que é uma porção normal? O que é muito pouco e o que é demais?”

Durante a terapia, Manuel tomou consciência de quantas coisas a doença o privava. Ele está seguro de que sozinho e sem terapia não teria conseguido vencer, apesar de repetidamente tentar se lembrar de como era nos tempos antes de o distúrbio começar. “Eu queria voltar a sentir prazer, queria que aqueles pensamentos constantes parassem, e que tudo parasse de girar em torno da anorexia. Estou simplesmente feliz de ter isso de novo.”

Ajudando os companheiros de sofrimento

Manuel voltou a seu peso normal relativamente rápido, após cerca de um ano. Hoje, pesa 84 quilos e está grato por ter escapado de sua compulsão.

A ideia de fazer um podcast, ele teve durante um encontro de anoréxicos, num posto de aconselhamento. Como ex-paciente, fora convidado a responder perguntas. “Uma das mais frequentes era: dá realmente para superar, ou a pessoa é anoréxica para o resto da vida?”

Em sua plataforma, começou por contar sobre as próprias experiências como anoréxico, para assim partilhar tanto vivências negativas como positivas com outros, dar-lhes coragem. Acima de tudo, para afastar o medo de procurar uma central de aconselhamento.

Nesse meio tempo, contudo, Manuel acabou de contar sua história, e convida cada vez mais interlocutoras e interlocutores a seu Magerquark & Birne. “Chegou a se formar um pequeno grupo cujos participantes se comunicam no Facebook. O mais difícil é que é preciso admitir a própria anorexia, e que se está procurando ajuda e disposto a aceitá-la. É possível vencer, sim, mas não tenho nenhuma receita secreta para isso.”

Ciberia // Deutsche Welle

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