A Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), fez nesta quarta-feira (12) o primeiro dia de audiência para analisar o caso da execução de 26 pessoas e de abuso sexual de três adolescentes.
A chacina, supostamente realizada por policiais civis em incursões na Favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro, aconteceu nos dias 18 de outubro de 1994 e 8 de maio de 1995.
A Corte convocou o Estado brasileiro, os representantes das vítimas e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da OEA, para a audiência pública, em Quito, no Equador, marcada para as 14h30, pelo horário de Brasília.
A audiência ocorre após duas petições apresentadas à CIDH em 3 de novembro de 1995 e 24 de julho de 1996, pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e pela entidade de direitos humanos Human Rights Watch/Americas, que também foram encaminhadas ao Estado brasileiro.
26 mortos, corpos no lixo e nenhuma punição
Na manhã de uma segunda-feira, 8 de maio de 1995, Cosme, 20 anos, estava na TV, no rádio, nos jornais: os corpos dele e de outras 12 pessoas foram levados num carrinho de mão e postos no carro que levava lixo, depois do que, na versão oficial, foi mais um tiroteio entre policiais e traficantes da favela.
Nesta semana, mais de 20 anos depois, o nome de Cosme Genoveva é o primeiro na capa do processo que levará o Brasil ao banco dos réus na Corte Interamericana de Direitos Humanos, no primeiro caso em que o país responderá por não punir a violência policial.
As audiências acontecem nos dias 12 e 13 de outubro em Quito, no Equador. A ação cobra a responsabilização do Estado brasileiro por 26 mortes na favela Nova Brasília: 13 na chacina de outubro de 1994 e mais 13 na chacina de maio de 1995, ambas durante ações policiais.
Até hoje, ninguém foi preso, julgado ou condenado por nenhuma das mortes.
A primeira chacina resultou de uma operação da Polícia Civil em busca de carros roubados, armas e drogas, em 18 de outubro de 1994. Dias antes, traficantes do complexo do Alemão haviam metralhado a delegacia da região, a 21ª DP.
O Rio de Janeiro vivia então uma escalada de violência, com enfrentamentos constantes entre a polícia e quadrilhas armadas. O governador era Nilo Batista (PDT), vice que assumiu o posto quando Leonel Brizola (PDT) renunciou para disputar a Presidência da República.
A polícia informou que as mortes resultaram de confronto, e o caso foi registrado como “auto de resistência”. Os laudos cadavéricos mostraram que pelo menos dez das vítimas foram mortas com tiros na cabeça.
Uma comissão independente montada pelo governo do Rio apontou sinais de execução sumária. Três jovens denunciaram que sofreram abusos sexuais de policiais.
Sete meses depois, em 8 de maio de 1995, já no governo de Marcello Alencar (PSDB), a Polícia Civil fez nova operação na Nova Brasília e, de novo, a versão oficial foi de que, num tiroteio com traficantes, 13 pessoas morreram – entre elas, Cosme Genoveva. Os corpos foram retirados da favela antes da realização da perícia.
A casa de onde foram retirados dez corpos parecia ter sido lavada com sangue, e pedaços de massa encefálica podiam ser vistos nas paredes. À época, um morador, testemunha do tiroteio, disse que as vítimas imploravam para não morrer.
Os dois inquéritos sobre Nova Brasília foram conduzidos para apurar autos de resistência e concluídos sem que policiais envolvidos na ação fossem indiciados pelas mortes.
Tampouco houve punição em relação às denúncias de abuso sexual. Os únicos acusados eram os mortos, apontados como envolvidos com o tráfico de drogas.
Novas investigações
Em 1995 e 1996, ONGs como Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional), Human Rights Watch e Iser (Instituto de Estudos da Religião) levaram os casos à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. No Rio, os inquéritos, enviados ao Ministério Público, foram arquivados e assim seguiram por muitos anos.
Em 2011, a Comissão Interamericana pediu ao Brasil informações sobre as mortes em Nova Brasília e fez algumas recomendações, como reparação do Estado às famílias por danos morais e materiais sofridos, além da realização de investigações efetivas para a punição dos culpados, entre outras.
Diante da recomendação da Comissão, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) desarquivou, em janeiro de 2012, o inquérito sobre os crimes de 1995, e, em março de 2013, o relativo à chacina de 1994.
Em maio de 2013, o MPRJ denunciou quatro policiais civis e dois militares pelos 13 homicídios de 1994, sendo que mais de 120 participaram da operação na favela. No processo, testemunhas contam que as vítimas foram algemadas pelos policiais, sofreram golpes e depois foram executadas.
Em 7 de maio de 2015, o Ministério Público optou por arquivar novamente o inquérito sobre a segunda chacina. Entendeu que as mortes decorreram do tiroteio entre policiais e traficantes e reconheceu que algumas vítimas tinham sinais de execução, mas que não era possível identificar de onde haviam partido os disparos.
Prescrição
Passados 20 anos do caso, os 13 homicídios prescreveram sem que ninguém fosse punido. Em maio de 2015, a Comissão Interamericana apresentou o processo de Nova Brasília à Corte de Direitos Humanos.
A ação cobra que o Estado brasileiro reconheça responsabilidade sobre as 26 mortes e faça uma reparação às famílias, tanto em dinheiro como simbólica. Solicita também medidas destinadas a evitar que o problema se repita, e entre elas está a federalização de crimes cometidos por policiais.
A cientista política Beatriz Affonso, diretora do Cejil para o programa do Brasil, diz que não há expectativa, por parte da acusação nem das famílias, do reconhecimento de que os mortos não eram traficantes – pelo menos alguns, de fato, estariam envolvidos em ações criminosas, mas poderiam ter sido presos e não mortos.
A ativista do Cejil, que participará da audiência na Corte Interamericana ao lado de parentes de algumas das vítimas na chacina, aponta, no processo de Nova Brasília, ações – como constrangimento a testemunhas e os sucessivos arquivamentos – e omissões, como a falta de perícia, que fortalecem a impunidade.
Segundo ela, o processo mostra que os policiais foram elogiados por seus “atos de heroísmo” e que faltou acompanhamento constante do caso pelo Ministério Público.
“Essas chacinas não são exceções; pelo contrário, são casos emblemáticos e trazem uma série de graves violações de direitos humanos: execuções sumárias e violência sexual, por exemplo, que ainda hoje se repetem. Quem vai estar sendo julgado por isso é o Estado brasileiro, principalmente os administradores de Justiça, que falharam ao investigar, processar e punir a violência policial nas comunidades”, afirma.
O procurador-geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Antônio Carlos Biscaia, já participou de audiência na Comissão da OEA sobre o caso de Nova Brasília e conhece bem o processo.
Disse considerar “pífio” e “injustificável” o primeiro arquivamento dos inquéritos iniciais e, sobre o fato de eles terem ficado muito tempo no MP, afirmou que houve punição para os responsáveis. Destacou que eles foram reabertos no período em que esteve na assessoria especial criminal do órgão – foi quando os seis policiais foram denunciados pelas mortes de 1994.
Segundo Biscaia, no segundo inquérito, sobre as mortes de 1995, os problemas eram tantos que não restou outra solução a não ser o rearquivamento. Biscaia considerou que, para o Estado brasileiro, será muito difícil defender-se na OEA.
Brasil apresentará plano para eliminar classificação de “autos de resistência”
Na audiência, o Brasil será representado pela Secretaria de Direitos Humanos (SEDH), pela Advocacia-Geral da União (AGU) e pelo Ministério das Relações Exteriores.
Em nota enviada por sua assessoria, a SEDH informou que, na audiência, o Estado brasileiro pretende apresentar medidas estatais para eliminar a figura dos “autos de resistência”, além de destacar avanços nas políticas de segurança pública do país e do Estado do Rio de Janeiro.
Hoje, com variações de nomenclatura de um Estado a outro, são registradas como auto de resistência mortes ocorridas em supostos confrontos nos quais o policial afirma ter atirado para se defender.
A SEDH, em particular, defende que o Estado brasileiro reconheça parcialmente a responsabilidade e as falhas para investigar as mortes e punir os responsáveis.
A Secretaria informou também que tem atuado no caso tentando articular, em conjunto com instituições federais e do Estado do Rio de Janeiro, o cumprimento das recomendações da Comissão, em especial, a reparação indenizatória por danos morais e materiais aos familiares das vítimas.
A Advocacia-Geral da União informou que “o Estado brasileiro confia que a Corte Interamericana de Direitos Humanos proferirá julgamento de maneira justa e imparcial, considerando os preceitos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e as provas produzidas no processo”.
O Ministério das Relações Exteriores confirmou que será a primeira vez em que o Brasil será julgado por um caso de violência policial, mas não quis comentar o mérito nem os rumos do processo.
O Brasil reconheceu em 1998 a competência da Corte Interamericana para analisar eventuais demandas judiciais relativas aos direitos humanos.
Tecnicamente, o que aconteceu no país antes disso não é da competência da Corte. Por isso, no caso de Nova Brasília, o que está sendo julgado é o que aconteceu após 1998 – os erros da investigação e a falta de punição aos responsáveis. Se for condenado na Corte, o Brasil terá de cumprir a decisão.
‘Gente não é lixo’
Um dos problemas do processo é justamente a falta de informações às famílias dos mortos.
Irmã de Cosme Rosa Genoveva, Y. diz que a família jamais recebeu qualquer satisfação oficial sobre a forma como ele foi assassinado.
Ela se lembra do irmão mais velho como alguém muito alegre e chora ao se lembrar do jovem que capturava passarinhos. Reitera que ele não tinha ligação com o tráfico, mas sabe que talvez isso não seja mais esclarecido.
Aos 35 anos, mãe de três filhos, Y. trabalha como gari da Comlurb. Conseguiu concluir o ensino médio, cursa direito como bolsista numa faculdade particular e quer ser juíza, “para dar mais direitos aos pobres”.
Dos tempos da chacina, uma das imagens que não consegue esquecer é a do irmão carregado no carrinho de mão e jogado na kombi do lixo.
“Todo dia varro lixo na praia. Meu irmão não podia ser tratado daquele jeito“, diz Y.
“Gente não é lixo.”
// BBC / Agência Brasil