Se você for a uma área no norte do deserto do Saara, no Marrocos, poderá ouvir – e ficar intrigado – com uma misteriosa música. Ela não vem de tendas, casas ou oásis, ela vem das dunas de areia.
No século 13, o explorador Marco Polo já descrevia esse ruído estranho. Ele o comparava a cavalos trotando em batalha ou a espíritos assombrando viajantes. Em outros momentos, dizia que ele “preenchia o ar com sons de todos os tipos de instrumentos musicais”, conta o livro As Viagens de Marco Polo.
Por muito tempo, o motivo do fenômeno natural raro permaneceu um mistério. Mas o físico francês Stéphane Douady tem buscado – e obtido – respostas sobre o fenômeno desde 2001.
Canto do acaso
Douady e sua equipe se depararam com os sons do deserto por acaso, quando estavam em missão para estudar a formação das dunas e notaram que elas emitiam um som fascinante. “Já a primeira duna que visitamos era uma ‘cantora’ excepcional“, disse o pesquisador, em entrevista por email à BBC Brasil.
O ruído surgiu quando um dos pesquisadores da equipe descia pelo monte de areia. A cada passo, ouvia-se um “uoooook”, descreve Douady. “Foi um momento mágico, (ouvimos) um som muito alto, de 110 decibéis, comparado ao de um pequeno avião sobre você”, acrescentou ao programa Outlook, da BBC.
E se alguém corresse ou manuseasse a areia com a mão, o tom mudava. Eles, então, passaram o dia ali coletando dados e testando diferentes sons com os grãos de areia.
“Foi um dos melhores momentos da minha carreira”, continua. “Primeiro porque era intelectualmente estimulante, pois as coisas que se pensava que eram sabidas na verdade não eram. E, ao mesmo tempo, estávamos nos divertindo tanto que parecíamos crianças no playground.”
Mas, até aquele momento, não entendiam ainda as razões por trás dos sons. “O mistério que era o mais excitante”, afirma Douady. Para estudar o fenômeno, os pesquisadores levaram areia do deserto até o Laboratório de Matéria e Sistemas Complexos (CNRS, na sigla em francês), em Paris.
Cada um dos quatro integrantes da missão encheu seis garrafas de vinho com areia e as colocou em sua bagagem. “Isso seria suficiente para fazer uma ‘avalanche’ cantante no laboratório”, conta o pesquisador.
Nas pesquisas em Paris, a primeira descoberta foi que o som era produzido pelo movimento sincronizado dos grãos de areia, e que o volume e a variação tonal eram influenciados pelo tamanho desses grãos. A partir daí, sua equipe visitou outros países para checar a teoria. Eles notaram que cada deserto tinha seu próprio timbre.
Os grãos do deserto de Atacama no Chile eram parecidos e tão cantantes quanto os do Marrocos. Seus grãos eram mais homogêneos e tinham um som mais “puro”. Em Omã, com grãos mais irregulares, o som era mais “duro”. Eles visitaram ainda Estados Unidos e China, onde o acesso era difícil, e as areias produziam menos sons.
Por que cantam
Descobrir por que algumas dunas cantavam e outras não acabou virando a motivação do físico francês. “Estava ficando até um pouco obcecado com isso”, conta.
Depois de meses de estudo, Douady notou momentos em que as areias paravam de cantar, e teve, então, a ideia de submergir os grãos em água salgada, como a do mar. Mais descobertas começaram a surgir. O deserto precisa ser seco, mas com “um pouco de água salgada para fazer a mágica”, diz Douady.
Outros fatores estão nos grãos: precisam ser redondos para rolarem com facilidade e serem cobertos por um tipo de verniz de minerais, como magnésio, alumínio e ferro. Esse verniz produz uma cor preta, que transluz. O pesquisador acredita que esse verniz é essencial para produzir o som, mas ainda não entende o motivo.
“Então o mistério ainda está lá”, comenta Douady sobre o próximo passo da pesquisa. “É incrível saber que ainda há outras coisas para se descobrir”.
Viagem de transformação
Douady afirma que a expedição às dunas cantantes mudou sua vida. Seu interesse foi além do comportamento físico das areias.
“Com todos aqueles sons, eu queria fazer música. Então busquei um artista que pudesse combinar gravações desses sons para fazer uma peça de música”, conta Douady, que promoveu o lançamento do CD Le Chant des Dunes, de Estelle Coquin.
“Tenho muito carinho por esse assunto. Não apenas porque é poético e musical, mas também porque é um fenômeno raro e não há muitas dunas no mundo que ‘cantam’ bem. E porque há fenômenos simples ao nosso redor que ainda são misteriosos e precisam ser explicados.”
O som das dunas despertou o interesse do documentarista Mathias Théry que, em 2008, voltou ao deserto na companhia de Douady, e fez um documentário, Cherche Toujours, que tem trechos disponíveis no YouTube.
// BBC