Após ter controlado com êxito seus dois primeiros surtos de covid-19 e promover sua vacina própria, país caribenho apresenta agora maior incidência das Américas. As causas são múltiplas, sendo algumas sistêmicas.
Uma avaria na principal fábrica de oxigênio medicinal de Cuba limita a disponibilidade do recurso nos centros sanitários, em meio à pandemia de covid-19. As autoridades reconheceram o problema no último fim de semana e anunciaram medidas de emergência.
Mas estas chegam após semanas de denúncias e pedidos de ajuda de cidadãos e pessoal médico nas redes sociais, devido à falta de medicamentos e oxigênio e o colapso dos serviços médicos e funerários em diversas províncias, desde fins de junho.
O Estado insular está trazendo de volta centenas de médicos que trabalham no exterior e transformando hotéis em hospitais e centros de isolamento, a fim de combater a terceira e pior onda da doença desde o início da pandemia, informa a sucursal da agência Reuters em Havana.
A média diária para agosto subiu para 8 mil contágios e 80 mortes. Desse modo, Cuba passa ser o país de maior incidência das Américas, com 500 novos contágios por cada 100 mil habitantes nos últimos sete dias.
Despreparada para cuidados secundários
O país caribenho enfrenta no momento “uma das piores ondas da região e do mundo, em termos de casos confirmados diários por milhão de habitantes”, comentou à DW o virologista cubano Amilcar Pérez Riverol. Nas últimas semanas, Cuba tem estado entre os mais afetados, em nível mundial, com mais de 700 casos diários por milhão e altas taxas de positividade nas testagens, em torno de 20%.
Mesmo descontada a subnotificação, a curva de óbitos também disparou, com mais de sete mortes diárias por milhão de habitantes. “Isso indica uma explosão de casos muito forte, para a qual o sistema de saúde não estava preparado“, confirma o pesquisador Riverol, atualmente contratado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Ele explica que, por ser gratuito, sem faturamento dos seguros médicos e sem priorizar a comercialização de medicamentos e serviços, “o sistema de saúde cubano se baseia sobretudo na prevenção, no nível dos cuidados primários”. Do momento que se ultrapassa essa linha de contenção, “a situação se agrava muito rapidamente”.
Isso, porque os cuidados secundários, que implicam capacidades e serviços hospitalares são, há muito tempo, “uma grande debilidade” da saúde na ilha sob governo socialista. Assim, com esta explosão de contágios, faltam remédios e sistemas de diagnóstico, leitos de enfermaria e terapia intensiva, equipamentos de ventilação e até oxigênio, afirma Riverol, que transformou suas redes sociais em foro de divulgação científica, análise crítica e compilação das estatísticas e estratégias cubanas perante a pandemia.
Variantes agravam onda de covid
Como se lê no site do Ministério da Saúde, para as autoridades cubanas, que conseguiram controlar com êxito os dois primeiros surtos de covid-19, “esta situação sanitária se deve ao descumprimento das medidas sanitárias, a mobilidade da população e à presença da variante delta”.
Esta já predomina entre as 16 mutações presentes na ilha, sendo quatro vezes mais transmissível e com uma carga viral 2 mil vezes maior do que as variantes iniciais. Para o Dr. José Moya, representante em Cuba da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), escritório regional da Organização Mundial da Saúde (OMS), a chegada das novas variantes do coronavírus, como a delta, seria, de fato, o principal motivo do atual acúmulo de casos.
O médico frisa que essa explosão da pandemia, a primeira na ilha caribenha, já ocorreu duas vezes no Peru, seu país natal, assim como em outras nações do continente (Equador ou Estados Unidos) e da Europa (Espanha e Itália).
Para o virólogo Riverol, por outro lado, a variante delta é central, mas por si só não explica a magnitude da explosão de contágios em Cuba. Entre os diversos fatores interconectados estariam a reabertura das fronteiras, fechadas desde 2020, e a posterior falta de protocolos sanitários e detecção de casos na fronteira.
Mensagens “triunfalistas” sobre vacina nacional
Além de tudo, o país atravessa uma aguda crise econômica, anterior à pandemia e agravada em 2021 pela pronunciada queda do turismo e as sanções dos EUA. Isso impede a aplicação de medidas rigorosas de restrição da mobilidade e gera aglomerações para o abastecimento de alimentos e outros produtos básicos escassos, aumentando o impacto dos contágios com as novas variantes.
Some-se a isso o reduzido acesso e possibilidade de compra de máscaras N95 ou FFP2, “as únicas comprovadamente eficientes”, e a pouca eficiência das máscaras de fabricação caseira, e mesmo cirúrgicas, diante das novas variantes.
Outro fator é o “cansaço pandêmico”, num país que, em grande parte do ano 2020, aplicou medidas extremamente restritivas de controle de mobilidade, acrescenta Riverol.
O virologista cubano lembra que não faltaram “falsos comunicados, com mensagens excessivamente triunfalistas” por parte das autoridades políticas e sanitárias, especialmente em relação à divulgação do desenvolvimento e aplicação de uma vacina própria, a Abdala, e de uma candidata avançada, a Soberana 02, logo antes da atual explosão de contágios.
Significativas são também as “falhas nos protocolos de diagnóstico, rastreio e isolamento de contatos, impactados pela crise econômica”, destaca Riverol. Moya, da Opas/OMS, menciona, ainda, a “concentração de diferentes gerações em casa”, própria da realidade latino-americana, e que dificulta o confinamento domiciliar, a que também foi preciso recorrer.
Nesse panorama a variante delta chegou a Cuba, quando o país – que não participa do consórcio internacional Covax, de distribuição de imunizantes – apenas iniciava sua campanha de vacinação.
Quase 5 milhões, dos 11,2 milhões de cubanos, já receberam uma dose da vacina nacional, enquanto 3 milhões completaram o ciclo de três doses. No entanto, estudos em outros países indicam ser necessária uma quota de 90% de vacinados para alcançar a almejada imunidade de rebanho.
Crítica a médicos e apoio internacional
Dentro desse complexo contexto, na segunda semana de agosto, após queixas e denúncias da população da província central de Cienfuegos, o primeiro-ministro cubano, Manuel Marrero, se atreveu a afirmar que “causas subjetivas”, como “o maltrato, a negligência e a indisciplina” dos médicos, pesavam mais do que a falta objetiva de recursos. A televisão estatal reproduziu a imputação sem qualquer crítica.
Mais de 20 jovens médicos e estudantes de medicina da província de Holguín, no leste da ilha, responderam indignados. Num vídeo publicado online, eles confirmaram o “colapso sanitário”, exigiram recursos, insumos, meios de proteção, respeito e justiça para o grêmio médico. Ao mesmo tempo, admitiram temer a reação do governo perante suas reclamações.
Horas mais tarde, o ministro da Saúde e o presidente cubano se apressaram em reconhecer o empenho dos médicos e do pessoal sanitário, que “estão trabalhando quase em horário integral, em situações muito complicadas”. Os profissionais de Holguín denunciaram nas redes ter sofrido pressões estatais por suas declarações, enquanto recebiam respaldo de outros colegas.
A partir do exterior, o Estado insular socialista tem recebido nas últimas semanas apoio material partindo da Opas/OMS, que autorizou a mobilização de recursos. Segundo Dr. Moya, o apoio parte também do sistema das Nações Unidas, assim como da Rússia, China, México, Canadá e Suécia e da União Europeia.
Seguem chegando a Cuba máscaras protetoras, gel, oxímetros de pulso, medicamentos e outros insumos, graças à cooperação internacional, num momento em que o país “está reagindo com todas as capacidades de que dispõe, ainda que estejam no limite”.