O Ministério da Saúde no Brasil vai financiar a compra de aparelhos de eletrochoque para o tratamento de transtornos mentais na rede hospitalar do Sistema Único de Saúde (SUS).
A medida, em processo de regularização pela Anvisa, assusta muitas pessoas que ainda guardam a imagem desses aparelhos como instrumentos de tortura.
Na França, hospitais da rede pública com serviços de psiquiatria utilizam a eletroconvulsoterapia (ECT) – ou eletrochoque, como a técnica é mais conhecida – para tratar pacientes com depressão grave, transtorno bipolar (também conhecido como psicose maníaco-depressiva) e em alguns casos de esquizofrenia refratários aos medicamentos. As aplicações costumam ser realizadas em ambulatório.
Há pelo menos uma década, psiquiatras franceses praticam a eletroconvulsoterapia (ECT) sob anestesia geral.
O tratamento é recomendado quando a pessoa enfrenta um sofrimento intenso, não reage bem aos antidepressivos ou apresenta sintomas ameaçadores para sua própria integridade física – risco de suicídio – ou das pessoas à sua volta.
Muitos pacientes com depressão profunda, por exemplo, param de se alimentar e ficam ameaçados de desnutrição, desidratação e complicações cardiorespiratórias, por passarem a maior parte do tempo prostrados na cama, sem conseguir se movimentar.
O psiquiatra Frédéric Haesebaert, médico do maior hospital francês nessa área, o Centro Le Vinatier, em Lyon, diz que a ECT demonstrou sua eficácia até em pacientes idosos que não reagem mais aos tratamentos químicos.
Os eletrochoques também podem ser indicados em casos de delírio esquizofrênico ou de um surto psicótico impossível de ser dominado com remédios. É um tipo de tratamento que evoluiu muito nos últimos anos e não carrega mais o estigma da tortura.
Imagem de filme superada pelo avanço da medicina
Quem não se lembra do filme “Um Estranho no Ninho” (1975), de Milos Forman? Na fita, o personagem interpretado magistralmente por Jack Nicholson questiona o que é a “loucura”, como os loucos são tratados pela sociedade, além de denunciar o horror que eram as sessões de eletrochoque nos antigos manicômios.
Setenta anos atrás, esse tratamento mais parecia um filme de terror. Não havia anestesia. A quantidade de corrente elétrica descarregada na cabeça do paciente não era controlada. A dor era traumática, os efeitos na memória muito graves.
Por isso, os eletrochoques foram rapidamente assimilados a uma espécie de cadeira elétrica reservada para pessoas “loucas”.
Hoje, quando se fala em eletroconvulsoterapia (ECT), os médicos descrevem uma outra realidade. Não que não existam efeitos colaterais. Eles são relatados pelos próprios pacientes: estresse antes da sessão, náuseas ao despertar da anestesia e perda de memória por um período curto ou prolongado.
Mesmo assim, muitos franceses que superaram a barreira do medo e do estigma para experimentar o tratamento afirmam se sentir melhor.
Alemanha utiliza ECT
Na Alemanha, a ECT é considerada uma terapia com eficiência cientificamente comprovada para pacientes com depressões, relata o médico Andreas Draguhn, professor titular de Neurofisiologia da Universidadede de Heidelberg.
“Estes pacientes são informados sobre esta possibilidade sempre que outros tratamentos não apresentam resultados satifatórios”, explica Draguhn.
Segundo o especialista alemão, essa é a indicação oficial de associações médicas, como a DGPPN (Associação Alemã de Psiquiatria, Psicoterapia, Medicina Psicossomática e Neurologia). Atualmente, a ECT é praticada em mais de cem clínicas alemãs, incluindo hospitais unversitários e centros de pesquisa psiquiátrica. A aplicação dos eletrochoques é inclusive coberta pelo seguro público de saúde.
APB aprova oferta de ECT no SUS
A Associação Brasileira de Psiquiatria (APB) considera que a compra de equipamentos de ECT para hospitais do SUS corrige uma injustiça em relação aos pacientes sem recursos financeiros para pagar uma clínica particular.
“Hoje, quem tem dinheiro se trata com ECT. Com essa técnica, evitam-se suicídios e outras dificuldades para as famílias”, diz o Dr. Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina (APAL), diretor e superintendente da ABP.
“O fato de o SUS se equipar com esses aparelhos não significa que todo mundo vai ser submetido a essa técnica”. A pessoa só faz se quiser. Nenhum médico vai dar eletrochoque por maldade”, acrescenta.
Em entrevista à RFI, o professor Dr. Valentim Gentil Filho, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), disse que a reorientação da política de saúde mental do Ministério da Saúde “está resgatando serviços essenciais à população”.
“Só algumas universidades e alguns poucos serviços privados oferecem a eletroconvulsoterapia no Brasil”, explica. Segundo o especialista, a Anvisa está regulamentando a importação desses equipamentos, relativamente caros, porque não existe mercado para a indústria nacional.
O psiquiatra conta que o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo atende de 500 a 600 consultas por dia.
“Temos de 25 a 30 pacientes que fazem ECT, a maior parte dos quais vem de outros serviços. Não são casos gravíssimos que não responderam a mais nada. São simplesmente pessoas que respondem melhor aos eletrochoques do que a outros tratamentos”, explica Gentil Filho.
“Alguns são psicóticos mistos que ao tomar medicamentos para psicose ficam mais irritados; outros, com depressão, que os medicamentos deixam muito acelerados. Alguns que não respondem bem ao lítio, por exemplo, com três a quatro aplicações de ECT ficam bem”, diz o psiquiatra.
“O eletrochoque deixou de ser o último recurso terapêutico para se tornar uma alternativa feita com segurança e para o bem-estar do paciente. Uma sessão dura 15 minutos e é um procedimento feito com toda segurança: psiquiatra, anestesista e enfermeiros especializados. É mais eficaz que a maioria dos antidepressivos, mas não funciona para todo mundo”, conclui Gentil Filho.
De acordo com o professor da USP, o tratamento à base de eletrochoques é amplamente realizado hoje na Inglaterra, Itália, Itália, Suíça, Alemanha, Estados Unidos, Canadá, Japão, mas apenas em alguns estados brasileiros e fora do SUS.
Além da anestesia geral, os outros cuidados a serem tomados, de acordo com o médico, são verificar se o paciente não sofre risco de hemorragia cerebral, se não é portador de patologias cardíacas que possam ser afetadas pela passagem da corrente elétrica, embora ela seja de baixa amperagem.
Paciente francês sente melhora
O maior serviço de psiquiatria de Paris, no Hospital Saint-Anne, acolhe de 20 a 30 pacientes por dia para sessões de ECT. No vídeo abaixo, realizado pela equipe de reportagem do programa Allodocteurs, do canal France 5, um paciente com transtorno bipolar fala sobre sua experiência com a ECT.
Quando tomou coragem para experimentar os eletrochoques, o homem conta que sofria há dez anos de transtorno bipolar. Os antidepressivos não aliviavam mais suas alterações de humor.
“Era atroz. A doença dá uma ótima sensação quando você está na fase eufórica. De repente, duas semanas depois, você cai em depressão por dois meses. Ficava na cama, não conseguia mais trabalhar, fazer nada”, conta.
Um ano depois de obter o diagnóstico, um médico propôs a ele as sessões de ECT. “É duro no início, ainda mais porque eu estava mal. Comecei com eletrochoques três vezes por semana, depois fui me sentindo melhor e hoje faço uma vez a cada cinco semanas“, relata.
No Hospital Saint-Anne, a sessão começa com o psiquiatra fazendo uma avaliação da atividade cerebral do paciente após a instalação de eletrodotos na cabeça. Depois, a pessoa recebe uma injeção de um produto para imobilizar os músculos, seguida da anestesia.
Os eletrochoques duram apenas alguns segundos, tempo suficiente para produzir um ataque epilético que vai aliviar o sofrimento do doente. O interesse de causar um choque elétrico é estimular os neurônios e estabeler novas conexões entre eles.
De acordo com a psiquiatra Claire Gautier, o objetivo da ECT é tratar o paciente de forma eficaz. “É um tratamento que funciona mais rapidamente do que muitas associações medicamentosas que, em determinados casos, demoram semanas para surtir eleito.” O paciente do vídeo já realizou 120 sessões de ECT e retomou o trabalho.
Romantização priva terapia para casos difíceis
Outro psiquiatra de São Paulo ouvido pela RFI, que atende em consultório particular e pediu para não ter a identidade revelada, disse ter estranhado a polêmica em torno “do retorno dos eletrochoques”. O médico acompanha vários pacientes psicóticos, que sofreram ao passar por instituições anteriormente e encontraram alívio na ECT.
“Sou muito grato à eletroconvulsoterapia na solução de casos difíceis, resistentes às múltiplas associações medicamentosas oferecidas. Felizmente, a dificuldade vem diminuindo com melhoria da pesquisa na área da psicofarmacologia; assim, há anos não preciso indicar a ECT”, afirmou.
“Abuso por equipes mal instruídas tendo como objetivo controle comportamental agudo (agitação, agressões, etc.) deve haver, mas qualquer conduta médica corre tal risco”, acrescenta o psiquiatra.
“O eletrochoque continua polêmico por romantizações como a do filme ‘Um Estranho no Ninho’, e diante da glamurização do ‘diferente’, quando na verdade há muito sofrimento em quadros sérios como bipolaridade, depressão e esquizofrenia quando têm baixa resposta ao protocolo de tentativas farmacológicas”, explica.
“A polêmica atual no Brasil me surpreendeu. Estou na prática privada há décadas e sequer imaginava que o serviço público ainda não contasse com tal recurso”, afirmou o especialista.
E o psiquiatra brasileiro Carlos Cavalcanti, que atende em consultório particular em Paris, diz mesmo que a ECT é “uma maravilha”. “Hoje, se faz isso no mundo todo, é um tratamento feito com todo o cuidado, uma excelente alternativa” para pacientes refratários à melhora com remédios.
// RFI