Há quem chame de carne artificial, carne celular ou até carne de laboratório, mas a verdade é que esse tipo de carne sintetizada está cada vez mais perto de se tornar uma realidade na nossa mesa. E a culpa pode ser de um português e de uma startup norte-americana que já faz ovos sem… ovos.
Feita a partir de uma amostra de células de músculo do frango, extraídas sem sofrimento para o animal, esse tipo de carne é produzido de forma sustentável e pode ser o futuro da alimentação.
Por enquanto, os protótipos criados são uma “pasta celular“, com um aspecto semelhante ao da carne moída, que pode ser usada para fazer hambúrgueres, nuggets ou tacos.
“Provei os protótipos de frango, que vamos lançar até o fim do ano. As células foram cozidas em uma frigideira, sem tempero e foi incrível. Cheiram e tem sabor de frango“, contou ao DN Vítor Espírito Santo, engenheiro biomédico português e coordenador do departamento de agricultura celular no projeto “clean meat” da startup Just.
Muito em breve, segundo contou o engenheiro, os produtos que agora são testados podem chegar, em escala reduzida, ao consumidor e à nossa mesa. “Temos contratos de exclusividade com restaurantes com estrelas Michelin, onde deverão ser lançados até o fim do ano”, revelou.
Apesar de o valor de produção do alimento de laboratório ainda não ter atingido o preço pretendido, a startup espera que possa ser semelhante ao da carne convencional encontrada nos supermercados.
Vítor Espírito Santo, de 33 anos e natural de Braga (norte de Portugal), trabalhava na área da imunoterapia para o câncer na Inglaterra quando, em um congresso em Haia (Holanda), a empresa norte-americana o abordou. “Me interessei pelo tema, achei que podia contribuir de forma ativa para esse objetivo. Achei a missão incrível”, revelou.
A missão, como o próprio explica, é “criar alternativas [à carne e ao peixe] altamente nutritivas, saborosas, acessíveis e produzidas com ingredientes mais sustentáveis”. Tudo porque “o impacto ambiental da produção de carne é insustentável a médio prazo“, defendeu.
Atualmente, a área mundial ocupada pelas pastagens, a água consumida, o uso de energia e a emissão de gases de efeitos estufa contribuem em grande medida para a insustentabilidade do setor e com o aumento da população mundial, torna-se urgente “produzir produtos de forma mais sustentável”.
A Just, que já produz maionese e ovos sem a utilização de ovos, também já criou os protótipos de carne de frango e pato, existindo outras carnes em pesquisa em laboratório.
O processo é iniciado com um isolamento de células do animal, sem sacrificá-lo. “É como uma biopsia, na qual se recolhe um pouco de material e podemos trabalhar com um músculo ou com outra parte”, explica o engenheiro envolvido no projeto.
No laboratório, a equipe mantém as células recolhidas vivas em uma cultura, garantindo a proliferação. O objetivo, segundo conta Vítor Espírito Santo, é chegar a uma produção massificada das células.
O meio de cultura das células é uma espécie de “sopa de nutrientes” para as células recolhidas. Contém proteínas, vitaminas e açúcares – todos os nutrientes que necessitam e estão habituadas a ter no corpo do animal.
Mantidas em uma incubadora que imita as condições fisiológicas do animal, como a temperatura e o nível de oxigênio, as células ficam nas condições mais apropriadas para proliferarem.
Produção em escala
Para dar resposta às necessidades do mercado, a empresa quer passar à produção em escala e um dos desafios apresentados passa por otimizar o meio de cultura que, até o momento, tem tornado esse tipo de carne sintetizada pouco acessível ao consumidor.
“No meio de cultura típico da clean meat, há muitas proteínas de origem animal, que são caras e muitas são obtidas de maneira pouco ética, como o soro de bovino”, afirmou Vítor Espírito Santo, acrescentando que o objetivo é deixar de utilizá-las.
Com esse objetivo em vista, a empresa tem tentado substituir a proteína animal por proteínas vegetais – uma tarefa facilitada pelo trabalho que a empresa tem desenvolvido desde a sua fundação, em 2011.
“Fui contratado para desenvolver o programa, para expandir o número de espécies com as quais se trabalha – desde vaca, porco, galinha –, mas também para tornar a estratégia economicamente viável”, contou o engenheiro.
“A próxima missão será chegar à textura de um bife ou de um peito de frango, atribuindo ao produto uma estrutura tridimensional mais complexa”.
Uma das outras vantagens apontadas pelo engenheiro português é a inexistência de contaminações na carne e de antibióticos ou hormônios. Com o trabalho realizado dentro de um laboratório esterilizado, a carne é “clean meat”, como Vítor a anuncia.
No momento, a Just se concentra no cultivo de células de um tipo mas, no futuro, a intenção será conseguir fazer várias combinações, com diferentes porcentagens de músculo e de gordura.
O mercado
Vítor Espírito Santos diz que será esperado o “crescimento progressivo de consumidores” e mesmo que, por questões culturais, existam países com um mercado resistente a esse tipo de mudança, há muitos países com maior abertura.
“Haverá vegetarianos que não vão aderir por considerarem que é proteína animal, mas há outros que dizem estar confortáveis com esse tipo de proteína porque não envolve questões éticas de sacrifício animal e é segura”, revela.
Porém, a empresa não é a única trabalhando na produção de carne sintetizada. A empresa holandesa Mosa Meat tem previsto para 2021 a entrada dos seus hambúrgueres de laboratório nos restaurantes.
Segundo Vítor Espírito Santo, a Just, antigamente conhecida por Humpton Creek, é a empresa mais antiga na área e a melhor colocada em um mercado que considera ter “espaço para todos”.
Ciberia // Diário de Notícias / ZAP