No país onde o debate é uma espécie de esporte nacional, qualquer imposição verticalizada do governo pode ser considerada um acinte. Desde a Revolução, os franceses alimentam uma espécie de ojeriza ao compulsório que parece refletir a icônica frase de Maio de 68: “É proibido proibir”. Enquanto isso, as contaminações galopam na França por causa da variante Delta. No entanto, neste sábado (24), 161.000 franceses protestaram nas maiores cidades do país contra o que chamam de “ditadura da saúde”.
O governo Macron sabia que se tratava de um assunto espinhoso: em janeiro deste ano, uma pesquisa do instituto Odoxa para Le Figaro e Franceinfo já mostrava que a vacinação contra o coronavírus dá origem a reações muito contraditórias entre os franceses.
Mesmo que a descoberta de vacinas contra a Covid-19 tenha melhorado um pouco o moral depois de um 2020 desastroso, a população francesa ainda permanecia, no início de 2021, resistente à vacinação com uma taxa de recusa de 58%.
Um aumento de 8 pontos em relação ao mês anterior, quando foram descobertos os primeiros imunizantes. “Incrivelmente, na França, quanto mais os cientistas elogiam a vacinação e falam sobre vacinas, menos os franceses querem ser vacinados!”, observou na época Gaël Sliman, presidente do Odoxa, durante sua análise da pesquisa, numa entrevista ao jornal Le Figaro.
Para Françoise Salvadori, autora do livro “Antivax, a resistência às vacinas do século XVIII aos nossos dias”, nos últimos 30 anos ou mais os franceses perderam a confiança nas autoridades de saúde por causa de escândalos como o sangue contaminado, o amianto, a nuvem atômica de Chernobyl ou, mais recentemente, o remédio Mediator, mesmo que esses eventos não tenham nada a ver com a vacinação, segundo informações da pesquisadora durante entrevista a uma revista francesa especializada.
“A esses escândalos foram adicionados os erros de comunicação. É o caso da campanha de vacinação contra a hepatite B nos anos 1990 na França, com discursos contraditórios de dois ministros da saúde sucessivos. Em seguida, houve o episódio da gripe H1N1 com uma falta de clareza sobre a presença ou não de adjuvantes nessas vacinas. Com a pandemia de Covid-19, as mudanças no discurso [do governo francês] sobre máscaras ou testes, infelizmente, não criaram um clima de confiança para quando chega a hora da vacinação”, explica.
O contexto mudou, seis meses depois. Hoje, cerca de 76% da população francesa apoia as decisões do Executivo destinadas a afrontar uma nova onda de Covid-19, que poderia ser causada pela variante Delta, segundo informações de uma pesquisa Elabe para o canal de TV BFM, datada de 13 de julho.
Assustado pela destruição causada pela cepa identificada pela primeira vez na Índia em diversos países – inclusive vizinhos, como a Grã-Bretanha-, o governo de Emmanuel Macron enfrentou o medo do dissenso, em véspera de ano eleitoral, e apostou suas fichas num projeto de lei que crava a obrigatoriedade do passaporte sanitário para ter acesso a serviços de todo tipo, e impôs a vacinação obrigatória para profissionais de saúde e outras categorias.
O resultado foi uma gritaria generalizada na sociedade francesa. Baixada a poeira do anúncio, uma parcela da população continua resistente às novas medidas, e seus protestos andam ganhando novos adeptos, como comprovam as 168 manifestações em toda a França neste sábado (24) que, segundo fontes oficiais, reuniram no total cerca de 161.000 franceses.
O número não é pequeno e com certeza deverá impactar nas próximas decisões do governo, ou pelo menos na avaliação do projeto de lei pelos parlamentares na Assembleia.
O ministro da Saúde, Olivier Véran, antecipando o descontentamento, já havia anunciado em vários programas televisivos franceses que o passaporte sanitário seria abandonado “tão logo for possível”. “Não o teríamos feito se o contexto fosse diferente”, disse Véran ao jornal Le Parisien.
“Vamos acabar com isso assim que pudermos“, prometeu. “Quando 90 ou 95% da população for vacinada, teremos 300 casos por dia em vez de 20 mil. Aí vamos conviver com o Covid, até que a doença desapareça por conta própria”, afirmou o ministro, que prevê uma quarta onda forte com impacto hospitalar que pode ser muito importante “em meados ou no final de agosto”.
“Liberdade, liberdade!”
Com gritos de “Liberdade, liberdade!”, dezenas de milhares de pessoas manifestaram-se neste sábado na França contra as medidas do governo para lutar contra a retomada da epidemia de Covid-19 sob o efeito da variante Delta.
A polícia francesa estimou o número de manifestantes em 11.000 em Paris e quase 150.000 em comícios em uma centena de cidades, incluindo Marselha (sul), onde milhares de pessoas de todas as idades marcharam aos gritos de “Macron, passaporte sanitário, não queremos ”
Em Paris, uma manifestação composta principalmente por “coletes amarelos“, um movimento de protesto hostil à política social do governo, partiu da Praça da Bastilha, no sudeste da capital. Incidentes esporádicos tiveram policiais em motocicletas com manifestantes, segundo a agência AFP.
Vários milhares de outras pessoas, quase sempre sem máscaras e majoritariamente vindas da extrema direita e dissidências, reuniram-se ao som do hino nacional, a Marselhesa, na Praça do Trocadéro, a oeste de Paris, numa convocação do ex-eurodeputado da extrema direita Florian Philippot.
“Liberdade, liberdade” gritavam os manifestantes, de Paris e das províncias, reunidos em torno de dezenas de bandeiras francesas. “Liberdade, eu não sou sua cobaia“, resumia outro slogan em uma placa. Em um tweet, o ministro do Interior, Gérald Darmanin, relatou “9 pessoas presas” em Paris, onde ocorreram incidentes perto da avenida Champs-Elysées. “Condeno”, acrescentou, “com a maior firmeza os comportamentos violentos que visaram certos policiais e jornalistas”.
No entanto, o anúncio das novas medidas por Emmanuel Macron teve o efeito de acelerar a vacinação na França: 39 milhões de pessoas, ou 58% da população total, receberam pelo menos uma dose na sexta-feira e 48% já estão totalmente vacinados.
Mas o número de contaminações explodiu na França sob o efeito da variante Delta, altamente contagiosa, passando de 4.500 no dia 9 de julho para quase 21.500 na sexta-feira (23). A epidemia já matou mais de 110.000 pessoas na França até o momento, de acordo com o site oficial santepubliquefrance.fr.
A oposição às medidas do governo reuniu manifestantes anti-máscara, anti-vacina ou anti-restrições com demandas multifacetadas. No último sábado, mais de 110 mil pessoas se manifestaram em todo o país contra a vacinação, ou a “ditadura” do passaporte sanitário.
// RFI