O vírus da Zika atinge não apenas humanos, mas também macacos, segundo um novo estudo brasileiro publicado esta semana. A descoberta sugere que a doença também pode ter um ciclo silvestre no país, o que aumentaria seu alcance.
Atualmente, a Zika, transmitida entre humanos pelo mosquito Aedes aegypti, é considerada uma doença urbana e endêmica pelo Ministério da Saúde, que monitora os casos desde a epidemia de 2015.
Mas um estudo publicado nos Scientific Reports afirma que o vírus foi encontrado em carcaças de macacos que foram mortos a tiros, pauladas ou mordidas de cachorros durante o surto de febre amarela, nas cercanias de São José do Rio Preto (SP) e de Belo Horizonte (MG).
“O vírus Zika já tinha sido encontrado em macacos que conviviam com humanos no Ceará, mas esta é a primeira vez em que é encontrado inequivocamente em macacos de regiões de mata próximas a duas cidades”, disse à BBC o pesquisador da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp) e presidente da Sociedade Brasileira de Virologia Maurício Lacerda Nogueira, que liderou o estudo.
A descoberta, segundo Nogueira, significa que macacos brasileiros são hospedeiros para ele, assim como os humanos. Caso seja provado que mosquitos que picam estes animais também estão contraindo o vírus, fica estabelecido um ciclo silvestre, assim como o da febre amarela.
“Ainda não sabemos se o vírus conseguiu ficar circulando dentro da floresta. Agora, estamos investigando mosquitos e primatas em regiões de floresta mais profunda em São José do Rio Preto e em Manaus para ver se também encontramos os vírus neles”, afirma o pesquisador.
O estudo teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e reuniu pesquisadores da Famerp, da Universidade Federal de Minas Gerais, do Instituto Adolfo Lutz, da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual Paulista (Unesp), do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Dengue e da University of Texas Medical Branch (UTMB), nos Estados Unidos.
Animais doentes e “moles”
Todas as carcaças examinadas eram de animais que foram mortos no primeiro semestre de 2017, no auge do surto de febre amarela que, entre dezembro de 2016 e março de 2018, matou 676 pessoas no país e deixou mais de 2 mil doentes.
“A maior parte deles eram saguis (Callithrix sp.) e micos (Sapajus sp.), que costumam ser difíceis de capturar. Isso nos intrigou, e quisemos descobrir se eles estavam doentes de alguma forma. Não com a febre amarela, que os mata, mas com algo que facilitasse a captura”, disse Nogueira.
Cerca de 80 carcaças foram analisadas. O exame revelou que os animais não tinham febre amarela, mas cerca de 30% estavam doentes com Zika.
O sequenciamento do DNA do vírus encontrado nos primatas mostrou que era o mesmo que estava presente em humanos. Mosquitos Aedes capturados nos mesmos locais e no mesmo período também carregavam o vírus.
“Foi aí que entendemos que o vírus estava saindo da população e indo para os macacos. É o caminho de ida para o ciclo silvestre.”
Ainda durante o estudo, os cientistas infectaram macacos saudáveis com Zika e viram que o vírus se tornava presente em seu sangue – uma prova de que havia se multiplicado no organismo.
“Do período em que a viremia estava no auge, eles ficavam moles, extremamente dóceis e fáceis de manipular. É provavelmente por isso que foram capturados e mortos pela população. Mas eles se recuperaram, não morreram pela doença“, explicou o pesquisador.
“Em momentos de surto, as pessoas entram em pânico e matam os macacos, mas eles são vítimas como nós.”
Ciclo selvagem tornaria combate à doença mais difícil
O Zika vírus apareceu originalmente em macacos na África, mas infectava populações humanas em surtos esporádicos. Ao chegar a países do Sudeste da Ásia, ele passou a circular apenas entre humanos, transmitido pelo Aedes aegypti. Assim também permaneceu quando entrou no Brasil e em outros países na América Latina.
No ciclo urbano, o mosquito passa o vírus de um humano contaminado para outro, saudável. Já no caso da febre amarela, o que ocorre é o ciclo silvestre, no qual os macacos são os principais hospedeiros do vírus – ciclos urbanos da doença não são registrados desde os anos 1940 no Brasil.
Em regiões de mata, mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes picam os primatas e transmitem a doença a outros – podem também transmiti-la a seres humanos que vivam na região.
A circulação do vírus na floresta o torna mais difícil de erradicar completamente. Por isso, o Brasil ainda convive com surtos esporádicos de febre amarela, que afetam principalmente os animais.
Os pesquisadores ressaltam, no entanto, que a descoberta do Zika em macacos, por si só, ainda não é suficiente para dizer que já há um ciclo silvestre da doença no país.
“Esse estudo mostra que o macaco é um reservatório, mas ainda não sabemos se a carga viral que ele tem é suficiente para manter o ciclo. Uma coisa é achar o vírus nos macacos, outra é saber se eles estão infectando os mosquitos”, disse à BBC o médico Carlos Brito, especialista em arboviroses (doenças transmitidas por insetos) da Unversidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro do comitê ténico de arboviroses do Ministério da Saúde.
Maurício Nogueira, coordenador da pesquisa, também afirma que as próximas etapas do estudo buscarão determinar por quanto tempo os primatas ficam infectados com Zika e se a carga de vírus em seu sangue durante a infecção é suficiente para que mosquitos contraiam o vírus ao picá-los.
Caso isso não aconteça, os macacos ficariam doentes, mas o ciclo silvestre não aconteceria, restringindo a circulação do vírus em áreas de floresta. Mas, se o ciclo ocorrer, o combate à Zika pode se tornar mais difícil do que já é, segundo Brito.
“Ter o vírus circulando em primatas significa que temos mais um reservatório para ele, e mais risco de surtos em humanos também. Isso ampliaria o alcance da doença e dos seus efeitos devastadores. Uma vacina, por exemplo, se torna ainda mais urgente.”
Segundo o Ministério da Saúde, as vacinas de Zika ainda estão em estágio de desenvolvimento no Brasil.
“A pasta já se comprometeu, desde novembro de 2015, com mais de R$ 270 milhões para o desenvolvimento de vacinas e novas tecnologias nesta área. Desse total, R$ 100 milhões foram destinados para o custeio da terceira e última fase da pesquisa clínica da vacina da dengue, R$ 5,6 milhões para o desenvolvimento de vacina contra o vírus Zika pela Fiocruz, R$ 6,5 milhões para a vacina contra o Zika pelo Evandro Chagas”, disse, em nota.
Em 2018, até o dia 15 de setembro, o país teve 3.155 casos confirmados de infecção por Zika. Em 2017, foram 8.839 casos confirmados.
Ciberia // BBC