O mês de novembro de 2020 terminou com uma péssima notícia para os pacientes que necessitam fazer um transplante de medula óssea: o bussulfano, um medicamento essencial para a realização do procedimento, deixaria de ser distribuído no Brasil.
A farmacêutica Pierre Fabre, única empresa que comercializa esse produto no país, anunciou a desistência após a fábrica aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) na produção desse remédio encerrar suas atividades no exterior.
O bussulfano é uma das poucas opções terapêuticas disponíveis para indivíduos com tumores hematológicos, como os linfomas e as leucemias: ele destrói as células da medula óssea que estão doentes e, assim, “abre terreno” para instalar células saudáveis de um doador compatível.
Sem esse fármaco, o transplante de medula óssea fica absolutamente inviável em praticamente 50% dos casos e dificulta bastante o tratamento na outra metade, já que as demais alternativas disponíveis para essas situações são mais tóxicas e pouco práticas.
“Não há nenhuma lei que impeça um laboratório de tirar certo medicamento do mercado, mesmo que ele seja importante do ponto de vista da saúde pública”, contextualiza o sanitarista Tiago Cepas, coordenador de políticas públicas da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale).
Após muita pressão de médicos e pacientes, a decisão foi revertida — mesmo que de forma temporária. “Pelas últimas informações que recebemos, o fornecimento está garantido até 2022”, diz Cepas.
O bussulfano ilustra bem um problema estrutural que tira o sono de gestores de saúde e afeta a vida de milhares de pessoas que carecem de tratamentos no Brasil e no mundo: o desabastecimento de medicamentos.
Nos últimos anos, terapias primordiais contra sífilis, hanseníase, tabagismo e diversos tipos de câncer desapareceram e deixaram na mão quem mais precisava delas.
Durante a atual pandemia, até fármacos essenciais para tratar os casos graves de covid-19 apresentaram uma escassez preocupante.
Mas qual a origem dessa crise de saúde pública? E o que pode ser feito para resolvê-la?
Uma questão que se arrasta há sete décadas
A farmacêutica Luisa Arueira Chaves, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro – Campus Macaé, aponta que a falta de opções farmacêuticas não é um problema que surgiu no ano passado.
“Desde a década de 1950 nós já encontramos documentos que relatam o desabastecimento em algumas partes do mundo”, aponta.
Em sua tese de doutorado em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), Chaves observou uma mudança importante dos fatores que motivam essa escassez a partir da virada do século 21.
“Até os anos 2000, o desabastecimento era visto como um problema de demanda, em que os países não tinham dinheiro para comprar por questões de câmbio, desvalorização das moedas ou desorganização interna”, descreve.
Nos últimos 20 anos, porém, a perspectiva mudou completamente: o problema passou a ser na oferta dos produtos. “Começam a pipocar casos em que os governos possuem meios de pagar, mas não há quem faça a venda”, completa a especialista.
A questão ficou tão séria que a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) começou a fazer reuniões e debates sobre o que poderia ser feito para lidar com isso.
Em 2017, a entidade estabeleceu as suas primeiras definições do que significa o desabastecimento. “Isso é muito importante para se definir políticas públicas globais e entender onde estão os gargalos desta cadeia de suprimentos”, ressalta Chaves.
Muito na mão de poucos
Um dos primeiros fatores que ajuda a entender o drama do desabastecimento está na concentração extrema da produção de medicamentos no mundo.
“Grande parte dos insumos farmoquímicos, que são os ingredientes ativos dos medicamentos, vem de dois lugares: China e Índia“, descreve a farmacêutica Claudia Osorio de Castro, professora titular da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, no Rio de Janeiro.
Isso significa que a demanda terapêutica de todos os continentes está sujeita ao que acontece e ao que é fabricado por esses dois países.
Em algumas especialidades, essa dependência é ainda maior: entre 80 e 90% de todos os IFAs (Insumos Farmacêuticos Ativos) usados na fabricação dos antibióticos têm origem chinesa, por exemplo.
Portanto, qualquer interrupção numa fábrica já impacta a disponibilidade de tratamentos para infecções bacterianas.
Foi exatamente isso que aconteceu em outubro de 2016, quando uma explosão numa unidade fabril na província de Shandong, na China, interrompeu a produção de piperaciclina e tazobactam, remédios que atuam contra bactérias que afetam os pulmões, o trato urinário e outras partes do corpo.
Durante o ano de 2017, hospitais da Europa inteira e de partes da Ásia precisaram lidar com a falta dessa opção terapêutica tão importante em pacientes internados.
Foco no lucro
Outro ponto essencial para entender a crise de desabastecimento está no modelo de negócio das farmacêuticas.
“Existe uma pressão pela inovação, que motiva essas empresas a buscarem um lucro garantido e rápido. Elas se concentram, então, em produzir coisas novas, com excelentes evidências, mas com um preço altíssimo”, analisa Castro, que também integra a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Isso não significa que as opções terapêuticas antigas não deem lucro. Mas o valor é infinitamente menor quando comparado a uma molécula inovadora que acaba de ser descoberta.
Não é raro encontrar tratamentos recém-aprovados contra o câncer ou outras doenças que chegam a custar dezenas (ou centenas) de milhares de reais.
O exemplo mais extremo disso é uma terapia contra a Atrofia Muscular Espinhal (AME), uma desordem genética rara, aprovada em 2020 em alguns países, inclusive no Brasil.
Seu valor é de US$ 2,1 milhões (ou mais de R$ 11 milhões).
O que acontece, portanto, é uma substituição de produtos de baixa complexidade, custo inferior e ampla abrangência por aqueles que são altamente complexos, muito caros e que servem apenas a uma parcela específica de pacientes.
“Por mais que isso seja da dinâmica de mercado, nós vemos desaparecer medicamentos para hanseníase, sífilis e tuberculose, que são muitas vezes as únicas alternativas terapêuticas que a gente tem”, acrescenta Chaves.
Se o desabastecimento deve ser visto como um desafio global, ele também possui as suas particularidades e barreiras no contexto brasileiro.
A primeira delas é a forma como o Sistema Único de Saúde (SUS) está configurado: atualmente, uma parcela importante de remédios é adquirida por estados e municípios, não pelo governo federal.
Isso restringe o poder de compra e impede a negociação de lotes maiores, que certamente poderiam ser custeados pelo Ministério da Saúde por um preço mais atrativo.
Esses produtos poderiam então ser distribuídos para as cidades de acordo com as características e necessidades de cada local.
“Além disso, toda a estrutura de aquisição de medicamentos e tecnologias em saúde no Brasil é anacrônica, o que certamente contribui para esse cenário”, completa o médico José David Urbaez, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Outro grande impedimento é a desvalorização da nossa moeda. Como as negociações são feitas em dólar, o poder de compra do Brasil fica naturalmente mais restrito.
Por fim, há ainda a desorganização das cadeias logísticas internas – muitas vezes, um caminhão quebrado já dificulta a chegada de um medicamento até determinada cidade.
Aliado às questões globais (fábricas em poucos países e estratégia financeira das farmacêuticas), essa conjunção de fatores locais leva a situações impensadas e dramáticas.
Isso ocorreu, por exemplo, em 2016 e 2017 quando o Brasil sofreu com a falta de penicilina.
“Mesmo com décadas de uso, esse antibiótico continua sendo o melhor tratamento para a sífilis”, informa Urbaez.
Provocada pela bactéria Treponema pallidum, essa infecção voltou a ser um grave problema de saúde pública por aqui: entre 2010 e 2018, houve um aumento de 4.157% no número de casos notificados da doença.
Sem tratamento disponível, o nível de complicações ou o risco de transmitir a enfermidade para outros também subiu exponencialmente.
O cenário de escassez se repete na área da oncologia: uma planilha disponibilizada pela Abrale à reportagem da BBC News Brasil aponta que, ao longo de 2020, 24 medicamentos contra o câncer sofreram desabastecimento definitivo ou temporário. Desses, 6 não possuíam nenhum substituto disponível no mercado.
Os motivos para a falta variam desde a motivação comercial das farmacêuticas até mudanças nos locais de produção ou alterações no processo de fabricação.
Como se a situação já não fosse grave o suficiente, a chegada do novo coronavírus serviu para escancarar ainda mais os desafios do desabastecimento no Brasil e no mundo.
Ao longo dos últimos meses, hospitais começaram a sentir falta de produtos essenciais para tratar os casos de covid-19, especialmente aqueles que exigem internação em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
“Encontramos dificuldades de acesso a medicamentos que permitem fazer a ventilação mecânica com os respiradores, como sedativos e relaxantes musculares”, relata Urbaez.
Profissionais da saúde também tiveram que lidar com a escassez de antibióticos, tão necessários para os quadros em que bactérias se aproveitam da fragilidade do organismo para provocar pneumonias ou outras infecções.
Para completar, o uso inadequado de algumas drogas que pertencem ao famigerado “tratamento precoce” deixou na mão quem realmente necessitava delas.
O excesso de procura por hidroxicloroquina, ivermectina e outros remédios, que não têm comprovação de eficácia contra a covid-19, criou uma demanda artificial e fez com que os preços subissem e os estoques acabassem (ou ficassem significativamente reduzidos) em muitos lugares.
“Por um bom tempo, indivíduos com doenças reumatológicas como lúpus e artrite reumatoide tiveram dificuldade para conseguir a hidroxicloroquina”, exemplifica Urbaez.
Por meio de nota, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que tem publicado “editais de chamamento para que os detentores de registro desses insumos [anestésicos, sedativos, bloqueadores neuromusculares e demais agentes usados no enfrentamento à covid-19] informem os dados relativos à fabricação, estoque, comercialização e os fatores de risco para a produção”.
A agência também diz que “os dados integrais dos editais são compartilhados em tempo real com a Secretaria de Atenção Especializada à Saúde e com o Gabinete do Ministro da pasta da Saúde. A medida possibilita o mapeamento da quantidade de medicamentos disponíveis para atender à população brasileira e concede aos gestores da saúde a capacidade de orientação quanto à localização dos estoques”.
Como resolver essa equação?
Enquanto a OMS e outras instituições trabalham para encontrar soluções e “tratar” o desabastecimento do ponto de vista global, algumas iniciativas locais sinalizam caminhos interessantes.
A ONG Civica RX, sediada nos Estados Unidos, é um bom exemplo de como lidar com a questão com planejamento e estrutura.
O que eles fazem é sublocar fábricas ociosas para produzir medicamentos genéricos que estão em falta ou não têm mais interesse das farmacêuticas.
Atualmente, eles produzem mais de 40 tipos de fármacos diferentes, que são distribuídos a um preço módico para cerca de 1.350 hospitais espalhados pelos Estados Unidos.
De acordo com os especialistas, o Brasil tem uma oportunidade de ouro que não está sendo bem aproveitada no momento.
Por aqui, há uma rede de laboratórios farmacêuticos públicos ligados aos estados ou ao governo federal.
É o caso da Fundação para o Remédio Popular (FURP), em São Paulo e do Instituto de Tecnologia em Fármacos Farmanguinhos/FioCruz, no Rio de Janeiro.
“Com o devido incentivo, financiamento e política pública, esses locais poderiam adequar suas plantas fabris e começar a produzir medicamentos que o governo entende que são críticos para cuidar da saúde da população brasileira”, propõe Chaves.
Um gargalo importante aqui podem ser os IFAs (insumos farmacêuticos ativos), majoritariamente importados. Mas é possível arriscar que, em médio e longo prazo, dá para produzi-los internamente também.
No campo das leis
Mesmo antes do sufoco provocado pela ameaça de falta do bussulfano para os pacientes que necessitam fazer o transplante de medula óssea, a Abrale já tinha começado a se articular com outras entidades e representantes políticos para elaborar mecanismos que combatam o desabastecimento no país.
“Em primeiro lugar, precisamos da criação de um sistema de monitoramento, em que toda a sociedade ficasse sabendo ao mesmo tempo sobre os estoques de medicamentos essenciais”, descreve Cepas.
Segundo, a entidade tenta criar uma espécie de válvula de escape para suprir necessidades pontuais quando a escassez aparecer.
“Podemos pensar em parcerias com universidades e até laboratórios públicos ou privados que tenham interesse em fabricar esses produtos”, completa.
No momento, a Abrale está conversando com parlamentares em Brasília para a criação de projetos de lei que tratem deste assunto.
Mas Cepas admite que a pandemia traz muitas dificuldades para avançar com esta demanda.
A BBC News Brasil procurou diversas outras instituições para saber o posicionamento delas a respeito da crise de desabastecimento.
Elizabeth de Carvalhaes, presidente executiva da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) destacou que é preciso melhorar a comunicação entre todos os entes envolvidos nessa cadeia de suprimentos.
“Acreditamos que a união de esforços entre indústria, Governo Federal, governos estaduais e municipais seja a chave para aprimorar a gestão de saúde e garantir melhor acesso a todos os brasileiros”, escreveu a representante por e-mail.
Já a Anvisa, por meio de nota enviada pela assessoria de imprensa, destacou que a agência não possui um instrumento legal que impeça os laboratórios farmacêuticos de retirarem seus medicamentos do mercado.
O texto continua: “No entanto, a Anvisa responsável pela gestão e acompanhamento das notificações de descontinuação de fabricação encaminhadas pelos laboratórios, assim como pela análise de denúncias relativas ao desabastecimento do mercado de medicamentos. Diante de situações de redução na oferta de medicamentos no mercado nacional, a Anvisa articula-se em diversas frentes com o Ministério da Saúde, laboratórios fabricantes e demais “stakeholders” para buscar soluções que possam minimizar os impactos do desabastecimento para os usuários”.
A Anvisa ainda destaca que, de acordo com uma série de resoluções, fabricantes e importadores devem informar quando pretendem retirar algum produto do mercado, além de traçar planos para não deixar os pacientes na mão. Essas informações são disponibilizas no próprio site da agência.
Até o fechamento desta reportagem, não recebemos respostas às nossas solicitações de entrevistas do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) e da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp).
A Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) preferiu não comentar o assunto.
// BBC