O Parlamento francês aprovou, por unanimidade, uma lei para enquadrar a atividade das crianças influenciadoras na internet. O país se tornou o primeiro do mundo a legislar sobre a questão.
Crianças Youtubers fazem sucesso em diversos países – entre os 10 influenciadores mais bem pagos da internet, dois têm menos de 10 anos. Entretanto, a falta de regulamentação impera neste universo – não há controle sobre o quanto a atuação na rede pode atrapalhar os estudos, de que maneira o dinheiro recebido pelas plataformas e anunciantes será gerenciado e nem sobre o impacto que a exposição excessiva poderá causar, no presente ou no futuro.
O projeto de lei francês começou a ser votado em fevereiro, na Assembleia. Passou por ajustes do Senado em junho e, na última terça-feira (6), teve sua versão final aprovada.
“Tudo o que diz respeito às crianças precisa passar por um olhar da sociedade, maior do que o espaço da família. A criança é fragilizada nisso porque estamos falando de decisões do interesse de adultos. Pode haver situações em que ela vai ser explorada, por isso é importante legislar”, ressalta a psicóloga e psicanalista Marlene Iucksch, que atua na proteção da infância e da adolescência junto ao Tribunal das Crianças de Paris.
Ser Youtuber é um trabalho
O texto estabelece regras sobre o destino da renda gerada pelas postagens e os horários em que as crianças e adolescentes poderão se dedicar às filmagens, sem atrapalhar o ensino nem o período exclusivo de lazer. Durante a tramitação do projeto, as plataformas argumentavam que a atividade dos menores na internet é de lazer – mas entidades de proteção à infância reivindicavam para que fosse considerado um trabalho.
“O trabalho infantil é proibido na França, inclusive na internet, salvo derrogações”, disse o autor do documento, deputado Bruno Studer, do partido República em Marcha (LRM), do presidente Emmanuel Macron.
Segundo o parlamentar, o número de crianças influenciadoras contempladas pelas novas medidas é de “muitas dezenas”. A renda com as postagens pode chegar a € 150 mil por mês, “que permite a alguns pais parar de trabalhar”, frisou o deputado.
“Trata-se de uma atividade mercantil, que não criticamos, mas que precisa levar em conta a vulnerabilidade das crianças. Esse é um dos principais objetivos dessa lei”, afirmou à RFI Thomas Rohmer, presidente do Observatório da Parentalidade e da Educação Digital (Open), que acompanhou de perto a tramitação do projeto de lei e auxiliou na sua redação.
Renda guardada até a maioridade
Nestes casos em que uma relação de trabalho é constada, os Youtubers mirins passarão a se enquadrar nas normas em vigor para as crianças que atuam nas artes ou na moda. O dinheiro recebido na atividade on-line deverá ser depositado em uma conta bancária, que só poderá ser acessada quando o menor atingir a maioridade.
A exemplo do que ocorre em outros países, os Youtubers mirins franceses ficam famosos ao cantar e dançar, mostrar cenas da vida cotidiana, dar dicas sobre jogos e brincadeiras, testar brinquedos ou roupas, sempre com descontração. Em geral, tudo ocorre sob o impulso de pelo menos um dos pais, que também podem participar ativamente dos vídeos.
Na medida em que fazem sucesso, as crianças e adolescentes passam a ser remunerados pelas plataformas, de acordo com o número de visualizações dos vídeos, e a ser cortejados por marcas. As empresas oferecem desde presentes até cachês em troca do uso de uma peça ou acessório.
“A criança quer responder ao desejo dos pais. Quando o adulto cria uma situação em que ela vai ser uma vendedora, no fundo é o adulto que decide e a criança simplesmente responde”, explica a psicóloga brasileira, coautora de Baleia Azul, o trágico convite aos adolescentes, no qual aborda a manipulação psicológica de adolescentes pela internet, que pode levar jovens ao suicídio.
“Direito ao esquecimento” é medida utópica
A nova lei prevê ainda o “direito ao esquecimento”, ou seja, que a criança possa pedir a completa exclusão dos vídeos das plataformas, obrigadas a respeitar a escolha. A medida, porém, é utópica, na opinião de Rohmer.
“Pressupor que podemos deletar conteúdos na internet é uma mentira que qualquer um pode compreender facilmente quando é pessoalmente confrontado a isso. Os conteúdos publicados não implicam apenas quem publica e as plataformas, mas qualquer um que assista e possa salvar essas imagens, guardá-las e, um dia, voltar a publicá-las”, explica o presidente da associação parental.
Marlene Iucksch lembra que, ao se exporem a milhares ou até de milhões de pessoas na internet, os menores também ficam sujeitos não só a comentários elogiosos, como a críticas, que podem ser devastadoras.
“Por mais que ela seja ótima e apareça com brinquedos maravilhosos, ela pode despertar a raiva, a inveja de outras crianças, e receber retornos violentos. Uma criança pode não ter capacidade de lidar com isso”, afirma.
A superexposição também pode embaralhar fases do desenvolvimento infantil, como a noção da intimidade e a construção da sexualidade, além de gerar uma “adultização” precoce, ao inverter os papéis de provedores com os pais.
As plataformas de publicação também serão incitadas a adotar compromissos para melhorar o combate à exploração ilegal da imagem dos menores de 16 anos e aumentar a transparência sobre a legislação em vigor para protegê-los, além de redobrar a vigilância quanto a imagens que possam violar a dignidade das crianças e adolescentes.
“Tem coisas muito positivas nas redes sociais. Não se pode diabolizar tudo, mas devemos avançar com precauções”, sublinha Iucksch.
// RFI