A Rússia é um dos países onde o coronavírus se propaga mais rápido, e suspeita-se de uma imensa subnotificação. Agora, o governo que pintou a crise na Europa como uma catástrofe vive a sua própria – talvez ainda maior.
Muitos moradores de Moscou foram pegos de surpresa quando, na segunda-feira passada (10/05), o presidente Vladimir Putin anunciou um afrouxamento gradual nas restrições impostas aos cidadãos russos para combater o coronavírus.
A Rússia, com mais de 10 mil novos casos confirmados por dia, ocupa agora o primeiro lugar nas estatísticas mundiais de novas infecções e o segundo no número absoluto de pessoas contaminadas pelo coronavírus, atrás apenas dos Estados Unidos. E Moscou é o epicentro da doença no país.
Os moscovitas já aguardam ansiosos a chegada do bom tempo, após um longo inverno, e a chance de poder sair de casa, mas acompanham chocados, dia após dia, as cifras de infectados divulgadas pelo governo.
A Rússia já tem mais de 250 mil casos de coronavírus. O número de mortos está pouco acima de 2.300, uma taxa de mortalidade bem mais baixa em comparação a outros países, o que leva críticos do governo a suspeitar de uma enorme subnotificação dos casos.
Na capital, por exemplo, dados oficiais divulgados no domingo mostraram que, em abril deste ano, foram registradas 18% mais mortes do que no ano anterior, cifra que não estaria entrando na conta da covid-19.
O governo atribui o menor número de mortes e a cifra crescente e elevada de casos a um vasto programa de testes – segundo as autoridades, foram realizados 5,6 milhões no total. Isso teria permitido aos médicos identificar rapidamente as pessoas que necessitam de cuidados.
Para o cientista político Abbas Gallyamov, Putin está tentando não ficar para trás em relação aos países ocidentais. “Os países europeus já começaram a pôr fim aos bloqueios”, comenta. “Obviamente, resolveram o problema, e as coisas estão voltando ao normal. Putin acha que vai perder apoio público russo se a Rússia não se recuperar.”
Segundo Gallyamov, Putin teme perder apoio popular também porque as restrições foram mais duras para os russos do que para os europeus, uma vez que o nível de vida no país é mais baixo, e a maioria dos russos não tem dinheiro guardado.
Popularidade em risco
O “regime de dias sem trabalho”, como tem sido oficialmente exigido na Rússia durante as últimas seis semanas, terminou na terça-feira. A situação permite a abolição gradual de todas as restrições, como afirmou Putin em discurso à nação.
Isso aplica-se a todos os setores da economia: todas as empresas devem poder voltar a funcionar – a indústria pesada, construção, agricultura, transportes e energia. No entanto, as pessoas com mais de 65 anos e as que se encontram em grupos de risco devem continuar em casa. Em todo país, máscaras serão obrigatórias em locais públicos.
O líder russo salientou que o levantamento das restrições será gradual e que cada região do maior país do mundo terá que adaptar sua abordagem às diferentes condições locais. Moscou, por exemplo, afirmou que manterá as suas próprias medidas de confinamento até 31 de maio.
No discurso, Putin não escondeu que o desemprego é uma preocupação – em um único mês, mais de 1,6 milhão se registaram em busca de auxílio social ou trabalho.
Para o cientista político Gallyamov, está claro: o presidente russo está pondo a vida dos cidadãos em risco, a fim de aumentar sua popularidade. “Ele quer que os russos acreditem que não estão em pior situação do que as pessoas no Ocidente”, diz. Afinal, lembra ele, os meios de comunicação do Estado vinham mostrando a situação no Ocidente como catastrófica.
O noticiário oficial falava de circunstâncias dramáticas na Espanha e “cadáveres espalhados pelos Estados Unidos”, diz Gallyamov. “Putin acabou construindo uma armadilha com a sua propaganda”, diz o especialista. “Agora ele está sendo forçado a ignorar a realidade e as estatísticas.”
Repassando a conta para governadores
Do ponto de vista econômico, nada está mudando, pelo menos não nas zonas densamente povoadas, diz Serguei Zhavoronkov, do Instituto Gaidar de Política Econômica. Ele explica que Putin transferiu a responsabilidade para os governadores, que preferiam tornar as regras mais rígidas do que atenuá-las.
“A única mudança que realmente interessaria às pessoas seria a abertura de empresas não alimentares que também são importantes para a sobrevivência”, diz, acrescentando que, infelizmente, isso não faz parte do plano do governo russo.
Como anteriormente, só estão abertas mercearias e farmácias. Uma pequena oficina de conserto de automóvel contribui menos para a propagação do vírus do que um enorme supermercado, defende Zhavoronkov. Ele teme “consequências desastrosas” para a economia russa.
Também tem havido reações positivas ao discurso de Putin à nação. Segundo Serguei Netyosov, um virologista da Universidade Estatal de Novosibirsk, as máscaras faciais obrigatórias são um ponto de guinada na luta contra o vírus.
“Creio que o uso obrigatório de máscaras de proteção é muito mais eficaz do que algumas outras formas de proteção”, afirma. Referindo-se às universidades fechadas, ele comentou que os estudantes estão agora confinados nos seus dormitórios e em contato ainda mais estreito do que antes.
Netyosov considera que o relaxamento é prematuro. “A Rússia está atualmente no auge da pandemia e não no fim dela”, afirma. “Não podemos afrouxar as restrições nesta situação.” Ele diz que os hospitais estão à beira do colapso.
Os efeitos que as alterações mais recentes terão nos números das infecções só se tornarão claros nos próximos dias e semanas – assim como a forma como vão afetar os índices de popularidade do presidente russo.