Com a noite em pano de fundo, Samuel parte na sua van branca para começar a tarefa de distribuir comida aos imigrantes venezuelanos que vivem nas ruas de Boa Vista, perto da fronteira com a Venezuela.
Com caixas de leite, achocolatado em pó, arroz, feijão, açúcar, café e roupas, Samuel começa a jornada como voluntário nas imediações dos abrigos de acolhimento da cidade, onde milhares de venezuelanos passam fome.
“Tenho que sair na hora certa, na hora em que as pessoas estão cozinhando para ter certeza que elas vão comer e não vender os alimentos. Elas têm que ter ‘fogón’ [uma lata de metal cheia de madeira usada pelos venezuelanos para cozinhar]”, explica à reportagem da Agência Lusa, que acompanhou Samuel durante uma noite.
Antes de cada parada, Samuel, que pediu para não ser identificado pelo seu nome completo, decide a quem irá distribuir os alimentos. Famílias com crianças têm prioridade, no entanto, também se solidariza com homens, na maioria jovens, quando percebe que estão nas ruas, caídos, exaustos porque passaram o dia inteiro sem comida.
“Ei vagabundo, como está? Tem ‘fogón’?”, diz antes de parar perto dos abrigos onde ele e seu carro são reconhecidos de longe.
O voluntário faz perguntas sobre o dia a dia das famílias dos venezuelanos que vivem em barracas armadas nas ruas e são chamados por ele de “vagabundos“, palavra usada com uma conotação carinhosa e aceita com humor pelos imigrantes com os quais conversa.
“Vagabundo, se você não se comportar vou devolvê-lo para o Nicolás Maduro. Quer voltar para o Maduro?”, brinca com um homem à frente de um abrigo. “‘Non’, estou tranquilo. Tem um cigarro?”, ouve em resposta.
Perto da rodoviária, uma área perigosa da cidade de Boa Vista, uma pausa para tomar um café e instruções sobre o procedimento: distribuir a comida rapidamente e se preparar para correr.
Enquanto Samuel separa arroz, leite, café e açúcar para cerca de 15 homens que dormiam na calçada, o carro se torna o foco de interesse de outro grupo de venezuelanos, obrigando-o a abandonar o local rapidamente. Entre paradas, Samuel conta que nem seus colegas de trabalho em Boa Vista nem seus filhos que vivem no Rio de Janeiro sabem sobre a distribuição de alimentos que faz.
Samuel afirma ser um homem que não gostava de política, mas garante não ignorar o impacto negativo causado pela vinda de cerca de 30 mil venezuelanos para Boa Vista e a revolta de boa parte da população local. “A verdade é que da Venezuela para o Brasil vieram as prostitutas, os bandidos e os miseráveis. Eles estão causando problemas, mas não consigo dar as costas aos miseráveis”, disse.
Sobre a precariedade da vida dos imigrantes que estão na região da fronteira mais ao norte do Brasil, confessa que, embora prefira permanecer anônimo, agrada saber que é lembrado por quem socorre.
“Eu ajudei uma venezuelana que é cega. Uma vez ela me deu um abraço tão forte, tão verdadeiro, que até hoje me emociono. Ela nunca me viu, mas sabe ao longe quando estou por perto”, lembra.
“Se eu tivesse que escolher entre ser imortal e ser eterno escolheria ser eterno. Não sei, mais acho que essas pessoas vão se lembrar de mim para sempre. Então, posso ser eterno na vida delas”, acrescenta.
No final da jornada, com o carro e a expressão mais leve, Samuel reconhece que encontrar soluções para mitigar o impacto da crise migratória em Roraima, o estado menos populoso e um dos mais pobres do Brasil, será uma missão difícil.
“Não há solução mágica, mas seria bom que houvessem mais voluntários e que as organizações não-governamentais e os políticos deixassem de aproveitar esse sofrimento dos venezuelanos para promoverem seus interesses”, conclui.
A morte de um brasileiro e de um venezuelano após um furto em um comércio local na quinta-feira (6) agravou a tensão causada pelo fluxo migratório em Boa Vista. Alguns venezuelanos que vivem em um acampamento visitado pela Lusa, perto do abrigo Jardim Floresta, disseram que tinham medo de serem atacados por brasileiros.
No sábado (8), um protesto organizado por moradores de Boa Vista pediu a expulsão dos venezuelanos que estão nas ruas da cidade e os ânimos tiveram que ser controlados pelo Exército, que evitou um novo conflito.
O incidente aconteceu dez dias depois de o presidente Michel Temer ter anunciado a mobilização de 3.200 soldados para reforçar a segurança na região.
Há cerca de um mês, na cidade de Pacaraima, que fica na fronteira do Brasil com a Venezuela, um conflito acabou com a expulsão de 1.200 venezuelanos que estavam na cidade, após um assalto a um comerciante brasileiro.
De acordo com dados oficiais, desde 2017 entraram no Brasil 154.920 venezuelanos por via terrestre na cidade de Pacaraima, mas cerca de 79.402 deles regressaram ao seu país.
Dos que decidiram permanecer no Brasil, cerca de 5.200 vivem em abrigos construídos em Boa Vista e dependem da ajuda humanitária do governo e do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Outros milhares permanecem acampados nas ruas em busca de abrigo e trabalho.
Ciberia // ZAP