Durante a campanha eleitoral de 2018 e o período de transição, o presidente Jair Bolsonaro fez diversos comentários entendidos pelos povos indígenas como ataques diretos.
Bolsonaro defendeu a exploração econômica das terras indígenas, prometeu paralisar as demarcações e comparou índios em reservas a animais em zoológicos.
No primeiro ato oficial de seu governo, em 1º de janeiro, os temores dos indígenas se concretizaram. Bolsonaro enfraqueceu a Fundação Nacional do Índio (Funai), removeu o órgão da esfera do Ministério da Justiça e retirou dele a tarefa de demarcar terras indígenas, transferida para o Ministério da Agricultura.
Agora, uma nova iniciativa do governo gera resistência por parte dos povos tradicionais: a possibilidade de mudar o funcionamento dos serviços de saúde básica para os indígenas.
Desde o início da semana, protestos têm sido realizados pelo país afora. Prédios públicos e rodovias foram ocupados do Paraná a Rondônia, de Pernambuco ao Mato Grosso do Sul. Nas manifestações, os indígenas lutam pela manutenção da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), um órgão ligado ao Ministério da Saúde.
Criada em 2010, a Sesai é responsável por cuidar do subsistema de saúde indígena que funciona dentro do SUS. Concebido em 1999, esse sistema é dividido em 34 unidades, chamados Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei), que foram delimitados a partir de critérios não apenas geográficos, mas epidemiológicos e etnográficos.
O Dsei-Litoral Sul, por exemplo, perpassa a costa do Rio de Janeiro, de São Paulo e dos três estados do sul do país. A divisão leva em conta as especificidades dos povos tradicionais, como o fato de, muitas vezes, habitarem regiões remotas do país e serem sensíveis a doenças trazidas por não-indígenas. Cerca de 750 mil indígenas espalhados por mais 5 mil aldeias são atendidos, em muitos casos por funcionários de ONGs que prestam serviços à União.
Com o argumento de combater desvios e racionalizar a utilização de recursos, o governo federal avalia retirar da Sesai o status de área própria e repassar parte dos cuidados com a saúde indígena para estados e municípios, pelo menos nos grandes centros urbanos.
Em janeiro, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse que os contratos com as ONGs representam um modelo improvisado e com prestação de contas frágil. Em fevereiro, a ministra da Família, Damares Alves, agora responsável pela Funai, afirmou que há casos de corrupção na Funai e na Sesai. Um pente-fino estaria sendo realizado, segundo ela, mas até agora o governo não apresentou os resultados.
A questão da saúde indígena é acompanhada de perto pelo Ministério Público Federal. O subprocurador-geral da República Antônio Carlos Bigonha, coordenador da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF, reconhece que falta à atuação da Sesai um regime jurídico mais claro – a forma de contratação das ONGs, por exemplo, já rendeu uma condenação à União na Justiça.
O esforço do governo contra possíveis desvios é louvável, mas, ainda assim, o trabalho da Sesai é considerado eficiente, diz Bigonha. “A secretaria faz um trabalho de fôlego, que tem chegado efetivamente aos povos indígenas“, afirma. “O fato de a Sesai ter problemas sérios de gestão, e eventualmente de desvios de recursos públicos, não legitima por si só a municipalização da saúde.”
Para Bigonha, um dos problemas centrais ao atribuir a saúde básica dos indígenas aos municípios é o fato de muitos estarem em regiões remotas. “Isso pode ser uma solução fácil para um problema complexo. Seria trocar um problema pelo outro”, afirma.
Entre os indígenas, o clima é de indignação. A impressão é de que as mudanças na saúde são parte de uma ofensiva contra os povos tradicionais por parte do Planalto. “Esse governo tem mostrado um total despreparo e acha que pode acabar com qualquer política pública só mudando o organograma do Ministério da Saúde. Estamos preparados para enfrentar e resistir”, diz Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
A ativista, que foi candidata a vice-presidente pelo PSol, argumenta que a Sesai melhorou a situação da saúde básica indígena, antes precária. “Por muito tempo fomos atendidos pela Funai, depois pela Fundação Nacional da Saúde, mas esses órgãos nunca conseguiram atuar de forma satisfatória“, diz. “Não estamos simplesmente lutando pela permanência de uma secretaria, mas por um subsistema, uma vez que a acabar com ela seria ignorar toda a especificidade dos povos indígenas”, afirma.
Para ela, a iniciativa do Ministério da Saúde é fruto de preconceito por parte da gestão Bolsonaro com os indígenas. “É um governo com uma visão racista dos povos indígenas, que defende o que diz ser a nossa ‘integração'”, diz ela, se referindo à política aplicada pelo regime militar, que provocou diversas violações de direitos humanos. “Este governo quer impor uma outra visão do que é ser indígena, mas não precisamos de presidente para dizer isso, nós já somos indígenas”, afirma.
Antônio Carlos Bigonha, do MPF, não descarta o risco de retrocesso. Segundo ele, a entidade tem tentado sensibilizar o governo a respeito da necessidade de se levar em conta as especificidades da organização social dos indígenas, um princípio que está posto na Constituição.
“Se a gente não tiver um olhar diferenciado, vamos cair na antiga vala do integracionismo, uma coisa do século passado, para o qual ninguém quer voltar”, afirma. “O indígena é igual a todo brasileiro, mas tem suas especificidades e, nesta perspectiva, merece ser tratado de forma destacada”, diz.