“Continue a dirigir. E, se eles morrerem, largue-os na floresta.” Essa foi a ordem recebida pelo motorista do caminhão frigorífico onde 71 imigrantes morreram asfixiados enquanto eram transportados ilegalmente – e sem ventilação – por uma rodovia entre a Hungria e a Áustria.
O caso, prestes a completar dois anos, gerou indignação internacional foi um dos principais marcos da crise de refugiados na Europa.
Os mortos eram 59 homens, oito mulheres e quatro crianças vindos de Iraque, Síria e Afeganistão. Haviam embarcado no caminhão na fronteira entre Sérvia e Hungria. Pouco depois de partirem, rumo à Alemanha, começaram a gritar que estavam ficando sem ar.
O motorista então ligou para seu chefe, o traficante humano identificado como Samsoor L., que o orientou a seguir dirigindo, não abrir a porta do caminhão sob nenhuma circunstância e – o que causou mais comoção – a abandonar eventuais mortos em uma área florestal alemã.
Transcrições dessas conversas telefônicas foram reveladas pela imprensa alemã no momento em que o afegão Samsoor L. e outras 11 pessoas de nacionalidades búlgara e libanesa começaram a ser julgados, nesta quarta-feira (21), acusados de homicídio, tráfico humano e tortura. Se condenados, podem pegar a prisão perpétua.
Os 71 imigrantes já estavam mortos quando o caminhão frigorífico foi encontrado abandonado à beira da estrada na Áustria, em 27 de agosto de 2015. Autópsias determinaram que as pessoas lá dentro morreram “asfixiadas em condições horríveis”.
Tráfico humano
A quadrilha de traficantes humanos é acusada de ter transportado mais de 1,1 mil pessoas pelo Leste Europeu durante o pico da crise migratória, dois anos atrás. E acredita-se que Samsoor L., de 30 anos, cobrasse até 1,5 mil euros (R$ 5,5 mil) de cada migrante desesperado para entrar na Europa, fugindo de países em guerra.
Segundo os documentos apresentados pelos promotores do caso na Justiça húngara obtidos pela agência de notícias AFP, sua rede muitas vezes carregava os migrantes em caminhões “escuros, fechados e não ventilados” que, apesar de suas “condições torturantes”, despertavam menos atenção das autoridades.
A Promotoria também compilou 59 mil páginas de evidências em que detalha o descobrimento do caminhão abandonado na rodovia austríaca A4, perto da fronteira com a Hungria.
Policiais notaram que um líquido vazava de dentro do veículo – eram fluidos dos corpos, que já estavam em decomposição. Lá dentro, as autoridades encontraram dezenas de pessoas amontoadas – inclusive um bebê de menos de um ano – em um espaço de 14 metros quadrados.
Acredita-se que já estavam mortas havia dois dias, quando o caminhão ainda estava em território húngaro (motivo pelo qual os acusados estão sendo julgados ali).
Com exceção de uma pessoa, os 71 imigrantes asfixiados foram identificados. A maioria dos corpos foi repatriada a seus países de origem; uma dezena deles acabou sendo enterrada em um cemitério muçulmano em Viena.
Política europeia
A comoção gerada pelo caso repercutiu na política europeia: em agosto de 2015, as fronteiras entre países do Leste Europeu foram abertas para permitir a passagem das dezenas de milhares de imigrantes que tentavam ir da Hungria para a Alemanha, fugindo da guerra e da pobreza em países do Oriente Médio e norte da África.
Mas essa rota acabou sendo fechada pelas autoridades europeias no ano seguinte, à medida que a causa perdeu apoio de parte da opinião pública.
Atualmente, muitos migrantes continuam a correr riscos nas mãos de traficantes na Europa Oriental ou nas perigosas travessias pelo mar Mediterrâneo.
No dia seguinte à descoberta dos 71 corpos no caminhão, acredita-se que a mesma quadrilha de Samsoor L. tivesse lotado outro veículo refrigerado com mais 67 imigrantes, também em rodovias austríacas.
O desfecho só foi diferente porque os passageiros conseguiram abrir a porta do caminhão à força, evitando a morte por asfixia.
// BBC