Simone Biles, considerada a melhor ginasta da história, é especialista em saltos acrobáticos e saídas perfeitas. Em tornar o impossível possível em todos os exercícios da ginástica artística.
Mas talvez seu legado mais importante não seja o que conquistou nas competições, mas sim fora delas.
Na terça-feira (27/07), após o primeiro exercício da final por equipes nos Jogos Olímpicos de Tóquio, a estrela americana decidiu desistir da competição. Ela disse que queria se concentrar em sua saúde mental.
E no dia seguinte, a seleção americana de ginástica anunciou que Biles, de 24 anos, não participaria de sua primeira final individual. Ainda não está claro se ela competirá nas demais finais para as quais se classificou em Tóquio 2021.”Após uma avaliação médica adicional, Simone Biles desistiu de sua primeira competição final individual. Apoiamos integralmente a decisão de Simone e aplaudimos sua coragem em priorizar seu bem-estar. Sua coragem mostra, mais uma vez, porque ela é um modelo para tantas pessoas”, disse a equipe em um comunicado divulgado no Twitter.
A surpreendente decisão foi tomada em plenos Jogos Olímpicos, a competição máxima para uma modalidade como a ginástica.
E muitos concordam: o esporte depois de Tóquio dificilmente será o mesmo.
“As declarações de Biles romperam o tabu sobre a questão mental de atletas altamente competitivos. Ela quebrou certos paradigmas e será muito difícil botar esse assunto de novo debaixo do tapete”, disse à BBC Mundo Sergio Díaz, médico fundador do The Mind Institute, que trabalha na gestão mental de atletas olímpicos, como a colombiana Catherine Ibargüen.
“E isso vai mudar não só a forma de gestão mental nesta área, mas também nas sociedades em geral, porque os atletas tendem a ser um modelo seguido pelos mais jovens”, acrescentou.
No entanto, Biles não foi a única atleta de elite que falou sobre suas dificuldades.
Há pouco menos de dois meses, a tenista japonesa Naomi Osaka, vencedora de quatro torneios do Grand Slam e número dois do mundo, decidiu se retirar do Aberto da França pelo mesmo motivo: se concentrar em sua saúde mental.
Mas como a decisão dessas duas atletas está mudando o esporte de uma forma mais ampla?
Em menos de um ano
Problemas de saúde mental em atletas de elite não são um tema novo.
Por exemplo, o tenista britânico Andy Murray anunciou uma aposentadoria temporária das quadras em janeiro de 2019 para se concentrar também em sua saúde mental.
Mas, definitivamente, foram as declarações de Biles e Osaka que levaram a uma reflexão mais ampla sobre atletas altamente competitivos.
“O que Biles fez foi disparar uma série de alarmes: se isso acontece com a atleta mais importante de um dos países com mais recursos para o esporte, significa que outros [atletas] podem não estar muito melhor”, explica Díaz.
“A gestão da saúde mental tem sido negligenciada pela indústria do esporte, principalmente na América Latina, basicamente porque se tem negligenciado os atletas como indivíduos.”
Embora a saúde mental no esporte seja tratada há mais de 40 anos por especialistas como o psicólogo do esporte Richard Butler ou o técnico americano Tony Robbins, o tema nunca havia atingido um patamar tão grande de discussão quanto nos últimos meses.
“Os atletas não falavam sobre isso por vários motivos. Um porque não queriam ser vistos como fracos e, segundo, porque muitas vezes não sabiam o que estava acontecendo”, observou Diaz.
As declarações de Biles, como as de Osaka anteriores, mudam totalmente a percepção de que os atletas são máquinas que sempre têm que vencer, afirma o jornalista especializado em esportes da BBC Mundo, José Miguel Pinochet.
“Biles não tem sido a ginasta robô com a qual nos acostumamos. Ela é humana e mesmo com todos os seus triunfos, que lhe deram fama e popularidade, é evidente que ela nunca deixou de sê-lo.”
Em vez disso, Simone Biles mostra que um atleta é a mistura de muitos ingredientes.
“Por exemplo, ela é uma combinação de um talento natural que lhe permitiu dominar seu esporte e estabelecer novos limites do que é possível, junto com a personalidade que foi forjada ao enfrentar todos os tipos de adversidades em sua vida”, diz Pinochet.
‘Obrigada’
Assim, o fato de Biles ter falado de um assunto que até poucos anos atrás era tabu, e fazer isso em meio às Olimpíadas, não expôs esse debate apenas na esfera pública e dentro das delegações.
Também teve grande repercussão entre atletas de todo o mundo.
Por exemplo, a ginasta jamaicana Danusia Francis destacou que a atitude de Biles abriu uma nova forma de abordar a competição esportiva.
“Eu não sei vocês, mas acho que Simone Biles permitiu a todos que coloquem seu bem-estar mental acima de tudo. Que rainha. Ela é a melhor de todos os tempos em mais de um aspecto.”
Por sua vez, a lendária ginasta romena Nadia Comaneci, que acumulou nove medalhas de ouro (cinco individuais) em dois Jogos Olímpicos, destacou as dificuldades de corresponder às expectativas de uma nação inteira depois de tanto sucesso.
“Quanto mais medalhas você tiver quando voltar, mais pesada será a bagagem”, disse ela em conversa com a CNN.
Ela diz: “Há muita pressão porque você quer fazer o melhor que pode. Mas é importante lembrar que você quer fazer o melhor para si mesmo e não para os outros que esperam algo além do que você pode oferecer.”
Outro comentário surpreendente veio do Comitê Olímpico dos EUA, um dos mais poderosos do planeta, que deu todo o seu apoio àquela que é considerada a maior estrela da delegação do país.
“Você nos deixou muito orgulhosos”, disse Sarah Hirshland, diretora-executiva do Comitê Olímpico e Paraolímpico dos EUA.
“Aplaudimos sua decisão de priorizar seu bem-estar mental acima de tudo e oferecer a você todo o apoio e recursos de nossa comunidade da equipe dos EUA enquanto você navega esse caminho à sua frente.”
// BBC