A declaração do presidente Jair Bolsonaro sobre o desaparecimento do pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, durante a ditadura militar, gerou reações de indignação entre familiares, políticos e organizações de direitos humanos. Santa Cruz e parentes prometeram acionar a Justiça contra as falas do chefe de Estado.
Nesta segunda-feira (29/07), Bolsonaro declarou que sabe como desapareceu Fernando Santa Cruz, pai do chefe da OAB. Segundo a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o militante de esquerda foi morto em fevereiro de 1974 após ser preso por órgãos de repressão do regime.
“Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele”, disse o presidente, quando falava sobre a atuação da OAB na investigação do caso Adélio Bispo, autor do atentado à faca de que foi alvo.
“Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar às conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco, e veio a desaparecer no Rio de Janeiro”, acrescentou.
Após a declaração, o presidente da OAB anunciou que vai acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) para pedir que Bolsonaro conte o que sabe sobre a morte de seu pai. “Nós temos todo respeito pela figura do presidente da República. Mas o presidente Jair Bolsonaro não agiu hoje como tal. Hoje ele agiu como amigo do porão da ditadura, agiu olhando o passado e dividindo a sociedade brasileira.”
“O presidente mostra uma faceta muito preocupante do governante, que é a crueldade e a falta de empatia com o ser humano”, acrescentou Felipe Santa Cruz, que também publicou uma carta chamando o presidente de “cruel” e dizendo que ele não sabe separar o público do privado.
A própria OAB divulgou uma nota de repúdio à declaração de Bolsonaro, ressaltando que “todas as autoridades do país, inclusive o senhor presidente da República, devem obediência à Constituição Federal, que tem entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, na qual se inclui o direito ao respeito da memória dos mortos”.
O advogado Marcelo Santa Cruz, irmão do presidente da OAB, disse que sua família vai recorrer à Procuradoria-Geral da República (PGR) para cobrar explicações do presidente. “Vamos à PGR pedir que Bolsonaro diga à Justiça do seu país quem matou Fernando e onde estão os restos mortais para que, no mínimo, possamos fazer um sepultamento digno”.
A diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck, repudiou a afirmação do presidente, sublinhando “ser terrível que o filho de um desaparecido pela ditadura tenha que ouvir do presidente do Brasil, que deveria ser o defensor máximo da justiça e do respeito no país, declarações tão duras”.
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos enviou ofício à Presidência pedindo agenda com o presidente ou um porta-voz para obter as informações que ele disse ter não só sobre Santa Cruz, mas sobre o paradeiro de desaparecidos durante a ditadura, procurados por mais de 130 famílias.
A Associação Juízes para a Democracia (AJD), não governamental, defendeu que Bolsonaro seja investigado por crime de responsabilidade. “A infeliz declaração do presidente da República banaliza o desaparecimento forçado e desrespeita a dor pungente de brasileiras e brasileiros que esperam e procuram por seus entes desaparecidos, registrando-se que grande parte dos desaparecimentos decorrem da ação das próprias forças de segurança do Estado.”
As declarações também foram criticadas por políticos, incluindo aliados de Bolsonaro. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), chamou a fala de inaceitável e infeliz.
“É inaceitável que um presidente da República se manifeste da forma com que se manifestou. Foi uma declaração infeliz”, afirmou o tucano. “Não posso silenciar diante desse fato. Eu sou filho de um deputado federal [João Agripino da Costa Doria Neto] cassado pelo golpe de 1964 e vivi o exílio com meu pai, que perdeu quase tudo na vida em dez anos de exílio pela ditadura militar.”
O prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), classificou a fala de Bolsonaro de “absurdo, inaceitável, incompatível com a República democrática”. Ele é neto de Mário Covas, que teve os direitos políticos cassados pelo regime militar.
Horas depois da primeira declaração, Bolsonaro voltou ao assunto, dizendo, em vídeo postado nas redes sociais, que não foram os militares que desapareceram com Fernando Santa Cruz, mas sim integrantes do próprio grupo de esquerda em que militava. “De onde eu obtive essas informações? Com quem eu conversei na época, oras bolas”, disse. “Não foram os militares que mataram ele, não, tá? É muito fácil culpar os militares por tudo o que acontece.”
O presidente, entretanto, fez uma ressalva: “Não quero polemizar com ninguém, não quero mexer com os sentimentos do senhor Santa Cruz. Não tenho nada pessoal no tocante a ele. Acho que ele está equivocado em acreditar numa versão apenas do fato, mas ele tem todo o direito de me criticar.”
Segundo a Comissão da Verdade, Santa Cruz foi morto por agentes da ditadura. Ele desapareceu em fevereiro de 1974, depois de ter sido preso no Rio de Janeiro por agentes do DOI-CODI. Na época, seu filho Felipe tinha apenas 2 anos. Fernando era membro da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), grupo que combatia o regime.
O relatório final da Comissão da Verdade relata que Claudio Guerra, ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS-ES), afirmou em depoimento em 2014 que o corpo de Fernando Santa Cruz Oliveira foi incinerado na Usina Cambahyba, no interior do estado do Rio de Janeiro.