Brexit cria paradoxo que pode afetar “mais de 100 mil brasileiros” no Reino Unido

O início formal do processo de saída do Reino Unido da União Europeia hoje (29) criou uma situação ao mesmo tempo curiosa e apreensiva para brasileiros vivendo no Reino Unido. Apesar de “legalizados”, eles temem por seus direitos no país.

De acordo com estimativas de especialistas em imigração e mesmo das autoridades diplomáticas brasileiras, parte substancial dos expatriados no Reino Unido fia-se na dupla cidadania de um país da UE para ter direito de permanência.

Este contingente, agora, encontra-se em meio ao impasse envolvendo as negociações entre Londres e Bruxelas: o destino dos 2,9 milhões de cidadãos dos outros 27 países da UE é um dos pontos que prometem ser mais complexos no processo.

O governo britânico até agora não revelou maiores detalhes sobre como vai lidar com eles após “divorciar-se” do bloco. E isso tem causado apreensão em cidadãos europeus que ainda não obtiveram o direito de permanência definitiva no Reino Unido.

Entre eles, inúmeros brasileiros que se valeram das regras de ascendência para se beneficiarem do livre trânsito entre as fronteiras da UE.

“De certa forma, os brasileiros com dupla cidadania estão mais preocupados no momento que os imigrantes sem documentação. Por causa do Brexit, o foco das autoridades britânicas se voltou para os indivíduos de países da UE vivendo no Reino Unido”, explica a advogada brasileira Vitória Nabas, especializada em questões de imigração.

“Eu estimo que haja uns 100 mil brasileiros nessa situação, e o maior problema é que ninguém sabe ainda o que vai acontecer nessas negociações”, acrescenta.

Nos últimos meses, a procura de cidadão europeus (e não apenas brasileiros) pelos serviços de seu escritório em Londres cresceu a ponto de a advogada ter sido convidada por representantes diplomáticos de 90 países para palestras sobre o tema.

Em todas as ocasiões ela deu o mesmo conselho: apesar da incerteza, quem não deve, não precisa temer muito por agora.

“Tem muita gente preocupada porque há grande indefinição sobre quais serão os direitos dos cidadãos da UE no Reino Unido, e desde a vitória do Brexit no plebiscito tem havido uma corrida pelo processo de residência permanente, ao qual quem vive legalmente há pelo menos cinco anos no país tem direito. Mas há muita gente que poderá ter o pedido negado por ter sonegado imposto ou não tomado os cuidados legais necessários”, completa a advogada.

As regras de concessão de residência permanente no Reino Unido exigem “ficha limpa” na receita e as autoridades fiscais britânicas podem auditar pelos menos os últimos cinco anos de declarações de um requerente.

“Recebo clientes que vivem há 10 anos aqui e nunca pagaram imposto, e agora estão receosos de dar entrada no processo de residência permanente. Não acredito que haverá anistia, até porque o Ministério do Interior anunciou recentemente a abertura de mais de 200 vagas para um escritório de imigração que lida diretamente com cidadãos da UE no Reino Unido”, diz Vitória.

Também podem estar sob risco brasileiros e brasileiras casados com cidadãos da UE, mas sem dupla cidadania, e que têm direito de permanência no Reino Unido garantido por legislação europeia.

Especula-se que, após o Brexit, o governo britânico possa impor aos cidadãos da UE que vivam no país a mesma exigência financeira feita a seus cidadãos que se casem com estrangeiros – renda anual de pelo menos cerca de R$ 74 mil para casais sem filhos e de R$ 86 mil para casais com filhos.

De acordo com estatísticas oficiais, o número de pedidos de residência permanente por cidadãos europeus atingiu 240 mil até setembro do ano passado (o voto do Brexit ocorreu em junho), um número sete vezes maior que o registrado em anos anteriores.

Até o final de 2016, 90 mil ainda não tinham sido processados, por conta da sobrecarga dos funcionários responsáveis.

O clima de incerteza é motivado pela falta de sinais mais claros da estratégia de saída do governo britânico. A primeira-ministra, Theresa May, defende uma política de imigração mais rigorosa e seu partido, o Conservador, sempre reclamou da liberdade de movimento nas fronteiras da UE.

Mas, por outro lado, o Reino Unido tem 1,2 milhão de cidadãos vivendo nos vizinhos europeus, um contingente que poderia ser alvo de retaliação em caso de medidas mais draconianas por parte de Londres.

Para aumentar o impasse, a imigração e os direitos dos cidadãos expatriado da UE devem marcar também o crucial debate sobre o relacionamento econômico entre britânicos e o bloco político econômico, cujas 27 nações são o destino de 44% das exportações britânicas e de quem o Reino Unido importa 51% de produtos e serviços.

Mas um sinal de que nem isso garantirá um clima ameno nas negociações veio na terça-feira, quando o Parlamento Europeu reagiu de forma veemente a rumores veiculados pela mídia britânica de que o governo usaria o anúncio oficial do processo de retirada da UE para determinar que cidadãos da UE que chegarem nos próximos dois anos (o prazo inicial para as negociações do Brexit) não terão os mesmos direitos de quem já vive no país: a promessa é de vetar um acordo de saída que contenha medidas do tipo.

“Qualquer decisão unilateral que restrinja os direitos de cidadãos da UE no Reino Unido enquanto o país for membro do bloco é ilegal. E essa não seria a melhor maneira de iniciar as negociações”, advertiu, em entrevista ao jornal britânico The Guardian, Guy Verhofstadt, deputado que chefia um comitê especial do Parlamento Europeu sobre o Brexit.

Segundo estimativas da mídia britânica, mais de 25% dos pedidos de residência apresentados no último ano foram rejeitados, em algumas vezes por causa de erros de preenchimento. Houve quem reclamasse de ter recebido cartas em que o Ministério do Interior pede que o destinatário “se prepare para deixar o país“.

Mas o ministério deixou claro que cartas desse tipo não seriam mais enviadas para “deixar claro que ninguém legalmente apto a permanecer no país tenha que sair”. “Os direitos de cidadãos da União Europeia mantêm-se inalterados enquanto o Reino Unido for integrante do bloco”, disse um porta-voz do ministério.

Um garantia que não traz paz de espírito para a paranaense Eduarda (ela não quis revelar o sobrenome), que teme pelo futuro dela e da irmã. Ambas têm cidadania italiana e moram há mais de 10 anos no Reino Unido. Elas ainda não obtiveram residência definitiva.

“Eu recebo benefícios do governo por ser mãe solteira e tenho até medo de viajar para o Brasil, pois ouvi falar que europeus na minha situação poderão perder o direito de permanência”, diz a brasileira.

Em nota à BBC Brasil, o Consulado Brasileiro em Londres, disse que os setores de assistência a brasileiros no Reino Unido “têm acompanhado de perto o assunto”.

“Até o momento, não foi notado nenhum aumento no número de consultas sobre impacto do Brexit na situação migratória de brasileiros no Reino Unido que indique preocupação da comunidade com o tema”, afirma o consulado na nota.

// BBC

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