Em Moçambique, carecas vivem com medo de ataques mortais e violações de sepulturas

amandarossi / Flickr

Maputo, Moçambique

A “perseguição aos carecas” é motivada por crenças praticadas com ossadas ou outras partes do corpo, usadas em rituais.

Martinho Filhinho baixa a camiseta para mostrar uma cicatriz sobre o ombro, a poucos centímetros do pescoço. Foi feita com um facão, pela calada da noite, por desconhecidos que entraram na casa dele enquanto dormia. “Vinham cortar a minha cabeça porque sou careca”, lembra.

Aos 58 anos, Martinho ainda tem cabelo, mas não é suficiente para disfarçar a calvície. Ele foi a vítima mais recente de uma série de ataques a carecas e profanação de sepulturas relatados pela população e pelas autoridades, desde o final de 2016, na Zambézia, província do centro de Moçambique. Cinco casos resultaram em homicídio.

Duas das mortes aconteceram em povoados do distrito de Milange, onde vive Martinho, que teve a sorte de escapar – mas outros dois casos deixaram corpos decapitados e cabeças desapareceram. Os carecas vivos têm receio e nem os mortos escapam.

Uma fonte da corporação afirma que, de acordo com os indícios e depoimentos, a “perseguição aos carecas” é motivada por crenças praticadas com ossadas ou outras partes do corpo, usadas em rituais, porque supostamente atraem riqueza.

A mesma explicação é dada pelo porta-voz provincial da polícia na Zambézia, Miguel Caetano, que classifica a situação como “um novo fenômeno”. Tudo indica que sejam casos ligados a “superstições”, como os atos de violência praticados contra “pessoas albinas” – cujos órgãos se usam como amuleto de boa sorte.

Desde o início do ano, segundo o levantamento das autoridades locais, já foram violadas 15 sepulturas nos cemitérios do distrito e roubados os crânios. Um deles está enrolado em panos no posto policial de Milange, identificado como prova no caso contra um homem de 31 anos.

O suspeito detido em Milange trabalhava na agricultura. Era esse o seu “serviço” até um amigo tê-lo aliciado para exumar ossadas de carecas. Era suposto receber 80 mil meticais (cerca de R$ 4 mil) em kwachas, moeda do Malaui, só que o crânio desenterrado não agradou ao comprador, que o rejeitou.

Como chegou à ossada, quem era o comprador e qual a finalidade, diz não saber explicar. São pormenores reservados para o amigo, que está foragido.

Amado Selemane, 52 anos, cobre a careca debaixo de uma boina de autoridade, parte da farda de régulo (líder comunitário) de Tambone, aldeia da Zambézia no meio do caminho entre Milange e Mocuba, mas nem por isso vive mais descansado.

Amado é sobrinho de Martinho Filhinho e a experiência do tio mostra que não vale a pena esconder a calvície. “As pessoas me conhecem, sabem que sou careca“, conta o tio, tal como Amado e outro membro da família: “somos três carecas”.

A calvície não se pega, mas o medo é contagioso, mesmo junto de quem tem cabelo. “Este cenário assusta todas as pessoas”, sobretudo depois do que se passou em Tacata, em maio, conta Pedro Varela, 49 anos, primeiro secretário do círculo de Tambone.

“Uma mulher acordou e descobriu o corpo do marido sem cabeça“. Houve uma gritaria imensa, a população mobilizou-se e ainda amarraram uma pessoa – outra fugiu e foi detida mais tarde. Mas a cabeça do careca “não apareceu”.

Mário Macassa classifica o clima de receio como “um outro tipo de guerra“, comparando-o ao medo vivido pela população no passado devido aos confrontos entre as tropas governamentais e o braço armado da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo, principal partido da oposição).

“Soube de carecas que passaram a andar de faca. Outros a acordar durante a noite” em algumas aldeias, se organizando, se revezando para manter vigia até o sol nascer. Para combater uma suposta superstição, o administrador fez dos curandeiros aliados. “É uma forma de os autores do crime se sentirem ameaçados“. E tem resultado.

Pelo menos em uma ocasião, na localidade de Majaua, “um indivíduo foi pedir um ‘banho’ ao curandeiro”, uma purificação por ter profanado uma sepultura. Dado o alerta, foi detido.

Sonte Guamila, um dos guardiões de um cemitério nos arredores de Milange, lembra de um funeral recente em que se descobriu uma cova aberta. “Era de uma pessoa que tinha morrido de acidente”, mas que não constava que fosse calva. “O careca está ao lado” e a sepultura ficou intacta, ou seja, os assaltantes se enganaram.

A revolta da população cresceu e a profanação dos cemitérios é condenada de forma unânime. Hoje, o administrador Mário Macassa acha que a situação é mais tranquila e que já pode haver serenidade.

Ele próprio tem sinais de calvície, mas sem receios e acredita que a resposta conjunta da comunidade está travando a perseguição aos carecas.

Ciberia // ZAP

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