Desde que chegou a Cuba, há apenas dois anos, a internet móvel revolucionou a vida do país – ajudando as pessoas a encontrarem comida, combustível e até remédios em meio a uma escassez terrível. Mas também ajudou a população a organizar protestos em um lugar onde exibir um cartaz pode causar sérios problemas.
Muitos no único estado comunista das Américas agora se perguntam como puderam viver tanto tempo sem a hoje tão necessária internet. No grupo local de WhatsApp “Rede Solidária”, se acumulam as buscas por produtos de necessidade básica: “Farinha?”, “Alguém viu papel higiênico?”, Ou ainda “Alguém sabe onde encontrar leite?”.
Outros grupos online permitem que as pessoas vendam ou troquem produtos difíceis de encontrar. A reportagem da AFP apurou uma situação em que uma usuária queria trocar sabonete líquido por papel higiênico e refrigerantes, enquanto outro oferecia óleo de cozinha e sabonete em troca de comida para bebê.
Existem ainda grupos para ver produtos enviados por quem já está dentro de uma loja. Em uma plataforma chamada Que hay? (O que há?) são exibidas fotos de pasta de dente, sabonete e queijo, todas enviadas por um usuário que ficou quatro horas na fila apenas para entrar em um supermercado.
A chegada da internet
Até dezembro de 2018, quando a Internet móvel chegou pela primeira vez, os cubanos que desejavam usar a rede tinham que encontrar um dos vários pontos de acesso Wi-Fi em parques ou praças públicas e pagar caro por uma conexão não confiável. E mesmo esse acesso inicial só se tornou possível em 2015.
Hoje, com a maioria das pessoas usando o serviço 4G, mais de um terço de todos os cubanos – cerca de 4,2 milhões dos 11,2 milhões de habitantes – estão navegando na web com seus smartphones.
“Parece tão natural para nós hoje, mas às vezes eu paro e penso que há dois anos não tínhamos, e penso: ‘Como foi possível?’”, disse Marta Deus à AFP. Para a jovem de 32 anos, a internet abriu as portas ao empreendedorismo.
A revolução
Desde julho, Marta administra uma empresa de entrega em domicílio com pedidos pela Internet e no aplicativo de delivery Mandao – o primeiro em Cuba.
As bicicletas de entrega do Mandao e suas bolsas térmicas amarelas brilhantes já são onipresentes nas ruas de Havana, entregando cerca de 100 refeições diárias de 70 restaurantes.
O modelo de negócios, assim como em outros países, cresceu significativamente quando os moradores da cidade foram obrigados a ficar em casa para conter a propagação do coronavírus. A internet móvel “foi uma revolução completa”, disse Deus.
Além de comida e dicas sobre onde encontrar gasolina, alguns grupos online se dedicam a ajudar as pessoas a encontrar medicamentos, que estão sempre em falta.
“Hoje é muito mais fácil encontrar alguém que tenha o que você precisa: sem esses grupos, isso teria sido impossível. Teria sido uma questão de sorte”, disse Ricardo Torres, economista da Universidade de Havana.
A mudança radical no uso da Internet em Cuba também rendeu novas formas de entretenimento e a possibilidade de se conectar com outras pessoas.
Yasser Gonzalez, 35, queria organizar um grupo de entusiastas do ciclismo. Ele diz que graças ao acesso ao Facebook, começou a organizar eventos mensais que começaram com 4 ciclistas e hoje já soma 100.
E não são apenas os amantes das bicicletas que acessam sua página no Facebook. Certo dia, ele recebeu uma mensagem de um funcionário do governo municipal sobre os planos de uma nova ciclovia ao longo do Malecón, icônico calçadão que margeia a costa de Havana.
“Agora às vezes posso participar de reuniões nas quais eles discutem os planos de infraestrutura da cidade”, disse Gonzalez à AFP.
Outro lado da moeda
Claro, existem desvantagens também. Agora, o governo também pode ver o que está acontecendo, já que os são grupos públicos. Em outubro, as autoridades em Havana cancelaram um dos eventos de ciclismo de Gonzalez – oficialmente por causa da pandemia.
“Como eles podem cancelar um evento que podemos realmente demonstrar que é seguro para as pessoas?” ele perguntou.
Gonzalez tuitou diretamente para o presidente cubano Miguel Diaz-Canel sobre o evento. Poucos dias depois, ele foi interrogado pela polícia, que segundo ele o advertiu para deixar o assunto de lado.
Protestos online
Além de ajudar a tornar a vida cotidiana mais fácil em Cuba, a internet móvel também abriu novas formas de protesto.
Em novembro passado, artistas e intelectuais do chamado Movimento San Isidro causou polêmica nacional e internacional com uma campanha online em busca da liberdade do rapper Denis Solis.
Ele foi condenado a oito meses de prisão por acusação de desacato, depois de ter feito uma live respondendo a um policial que tentou entrar em sua casa sem mandato de permissão.
Os membros do grupo fizeram uma greve de fome, transmitida ao vivo – gerando um protesto espontâneo, e muito raro, em frente ao Ministério da Cultura, com de cerca de 300 artistas cubanos.
Manifestações em Cuba raramente são permitidas, pouco anunciadas e geralmente rapidamente interrompidas pela polícia. Desta vez, a polícia foi pega desprevenida. Não apenas o protesto teve permissão para acontecer, mas um funcionário do governo chegou a se encontrar com membros do grupo.
Assim, se a internet deu mais possibilidades de expressão e comunicação, também auxiliou nas possibilidades de vigilância de um Estado ansioso por controlar.
Filmagem para proteção
Camila Acosta, 27, jornalista do site de notícias da oposição Cubanet, disse que a internet móvel facilitou seu trabalho – mas também fez com que ela se tornasse um alvo.
Depois de postar uma imagem no Facebook que zombava do falecido ditador cubano Fidel Castro, um vídeo de uma grande fila do lado de fora de um supermercado e uma foto de sua intimação policial após um protesto, Acosta foi multada em 3.000 pesos (cerca de US $ 125).
Seu crime? Publicar online “informações contrárias ao interesse social, moralidade, decência e integridade das pessoas”.
Ela se recusa a pagar, correndo o risco de pegar seis meses de prisão e ainda jurou não parar suas postagens críticas, embora esteja sempre alerta.
“Quando eu saio, tenho meu telefone pronto para gravar ao vivo”, diz Acosta – caso seja detida. “É um pouco de proteção que temos”, disse ela à AFP. “Acho que a Internet é a pior coisa que aconteceu a este governo… A Internet se tornou aquele espaço de participação que nós, cidadãos cubanos, não temos há mais de 60 anos”.
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