Nosso planeta tem uma história turbulenta. E, há 252 milhões de anos, houve um episódio especialmente violento: uma erupção vulcânica chegou bem perto de destruir toda a vida complexa na Terra.
Os geólogos chamam o incidente de “mãe de todas as extinções” – evento que marca a transição de dois importantes capítulos da história do planeta: o fim do período Permiano (Era Paleozoica) e o início do Triássico (Era Mesozoica).
Mas não bastava simplesmente dar um nome ao fenômeno. Os cientistas queriam saber qual era, de fato, o melhor lugar para visualizar as rochas que se formaram no limiar catastrófico da ruptura entre os períodos Permiano e Triássico. Em 2001, após 20 anos de discussões, eles chegaram a um veredito.
Um penhasco perto de Meishan, na província chinesa de Zhejiang, oferecia o melhor panorama. E foi escolhido como “golden spike” (ponto que marca o limite entre tempos geológicos diferentes) da passagem do Permiano-Triássico, tornando-se um dos 65 locais em todo mundo que simbolizam as transições na escala geológica. Para facilitar a visualização das rochas, as autoridades instalaram uma escada.
De acordo com a escala de tempo geológico, vivemos atualmente no Holoceno, iniciado há cerca de 11,5 mil anos. Mas alguns cientistas defendem que nosso planeta atravessou uma outra fronteira geológica há cerca de 70 anos, dando início ao que chamam de Antropoceno, época caracterizada pelo impacto da ação humana na Terra.
A questão que alguns se perguntam é: que local do planeta oferece a melhor vista do momento em que o mundo moderno começou? Onde será o golden spike que determina o ponto de ruptura entre o Holoceno e o Antropoceno?
O pesquisador Colin Waters, do Serviço Geológico Britânico, em Nottingham, no Reino Unido, lidera a equipe que está avaliando as opções. Segundo ele, em declarações à BBC, definir um golden spike para o despertar do Antropoceno impõe desafios inéditos aos geólogos.
Sinais químicos ou biológicos
Muitos golden spikes estão localizados em penhascos, como o que fica perto de Meishan, na China. Mas, no caso do Antropoceno, esta não seria uma possibilidade.
Penhascos rochosos levam dezenas de milhares de anos para se formar. E, segundo Waters e seus colegas, o Antropoceno começou há apenas algumas décadas, por volta do ano de 1950, quando a população humana e seu padrão de consumo se aceleraram subitamente. Mas, mesmo descartando os penhascos, não faltam opções.
O início do Antropoceno provavelmente será marcado por um sinal químico ou biológico. Ainda não há informação oficial sobre o que este indício poderia ser: talvez os cientistas escolham o aumento da radioatividade atmosférica a partir de testes com bombas atômicas, a crescente concentração de microplásticos no meio ambiente ou qualquer outro registro.
Para conceder o golden spike, a equipe precisa encontrar uma localização geográfica em que esse sinal esteja gravado em algum tipo de material, que estava se acumulando quando o Antropoceno começou.
A princípio, esse material poderia ser até o nosso lixo. E é por isso que um dos locais que os pesquisadores identificaram como candidato era o aterro sanitário de Fresh Kills, em Staten Island, distrito de Nova York, nos Estados Unidos.
O aterro foi inaugurado em 1948 e chegou a receber no auge da operação cerca de 26 mil toneladas de lixo por dia. De acordo com algumas descrições, teria sido o maior depósito do tipo projetado pelo homem em todo o mundo. E certamente seria um bom candidato a golden spike do Antropoceno.
Mas, segundo Waters, os aterros sanitários apresentam sérios problemas. O material presente nos depósitos é constantemente danificado por máquinas, o que faz com que não haja uma camada precisa correspondente a cada ano. A fronteira seria manchada e desfocada e não uma imagem nítida. Segundo Waters, este é, na verdade, um problema apresentado pela maioria dos lugares onde o lixo humano é amontoado.
Seria conveniente colocar o golden spike do Antropoceno em um local criado inteiramente pela atividade humana, mas é difícil encontrar uma localização adequada. É por isso que os cientistas estão procurando agora em outros lugares.
Sedimentos
De acordo com Waters, pode valer a pena considerar o sedimento acumulado nos estuários. onde as águas do rio e do mar se encontram. Por exemplo, a substância que fica no fundo do Estuário de Clyde, na Escócia, documenta a poluição química dos processos industriais.
Neste caso, o material lodoso provavelmente não foi danificado, ao contrário do lixo em um aterro sanitário. Por isso, deve ser possível identificar a fina camada de lodo que foi acumulada em determinado ano. Ou seja, o limite do Antropoceno deve aparecer como uma linha fina, ao invés de um borrão.
Os sedimentos também se acumulam todos os anos no fundo dos lagos e oceanos. O lodo nas profundezas do Lago Crawford, em Ontário, no Canadá, contém um registro anual detalhado da poluição industrial. E, segundo Waters, pode ser outra localização adequada para o “golden spike”.
Mas esses sedimentos enlameados, particularmente aqueles que se encontram no fundo do oceano, não são exatamente acessíveis. A única maneira de visualizar a fina camada de lodo que marca o início do Antropoceno, há cerca de 70 anos, seria extrair uma amostra do sedimento e estudá-lo em terra firme.
Neste caso, falar é fácil, difícil é colocar em prática. O sedimento pastoso pode ser remexido durante o processo de extração, o que significa que o material referente ao limiar pode se misturar com a lama que está acima e abaixo, manchando o sinal químico que marca a fronteira. “O risco de apresentar um erro é grande”, avalia Waters.
Por estas razões, pode ser melhor colocar o golden spike em um local onde o material se acumule de forma mais permanente e em estado sólido.
Bem embaixo de Paris, por exemplo, há uma rede de tubulações em que sedimentos de calcário foram se acumulando, camada por camada, nos últimos 300 anos. Traços de metais, incluindo chumbo e cobre, estão presos nas finas camadas, documentando o crescimento urbano da capital francesa.
Se essas substâncias químicas forem escolhidas para definir o limite do Antropoceno, os calcários parisienses seriam uma excelente localização para o golden spike, diz Waters.
Outra opção – talvez a favorita de Waters até agora – seria um pedaço de coral do mar do Caribe. Os corais recebem uma nova camada de sedimentos a cada ano, e as substâncias químicas retidas nessas camadas são evidências de todo tipo de atividade humana – de testes de bombas atômicas ao aumento dos níveis de dióxido de carbono na atmosfera.
Mas, segundo Waters, todos esses candidatos apresentam uma desvantagem significativa. Até hoje, a comunidade geológica nunca atribuiu um golden spike a pontos como esses. “Talvez tenhamos que conversar com as pessoas que vão votar e descobrir o que seria mais aceitável para elas”, diz Waters.
Votação
De acordo com Mike Walker, da Universidade de Wales Trinity Saint David, no País de Gales, definir um golden spike não é uma decisão simples.
Há primeiramente uma votação entre os cientistas nomeados para explorar a fronteira em questão. Uma vez que eles escolhem sua localização favorita para golden spike, o local deve ser avaliado por uma comissão científica, sob a perspectiva de um período de tempo geologicamente mais amplo.
O Antropoceno, por exemplo, se tornaria provavelmente uma época dentro do período Quaternário, em que estamos atualmente. Desta forma, a Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário teria que votar se aceita ou não o candidato a golden spike.
Se eles votarem a favor, a proposta chega na Comissão Internacional de Estratigrafia, onde acontecerá uma nova votação sobre a adequação do golden spike. Se for aceito, ele segue para a União Internacional de Ciências Geológicas para avaliação final e, com sorte, a ratificação. Só então se torna oficialmente um golden spike.
Desta forma, talvez não seja surpreendente que Waters e seus colegas estejam interessados em escolher um candidato que não seja tão estranho as olhos dos vários organismos envolvidos na votação. “Podemos querer ir (para votação) com algo que eles estão familiarizados“, diz o pesquisador.
Waters tem como inspiração Walker e seus colegas. Em 2008, eles conseguiram persuadir as autoridades a designar o golden spike do Holoceno, que precederia o Antropoceno.
A equipe de Walker argumentou que o golden spike deveria ser colocado dentro de uma amostra extraída da camada de gelo da Groenlândia. agora armazenada em uma instalação em Copenhague, na Dinamarca. Nenhum golden spike havia sido colocado no gelo antes.
“Teve um comentário ligeiramente sarcástico que ouvi, se referindo a um ‘golden spike na geladeira'”, lembra-se Walker. Mas, ainda assim, a decisão foi ratificada.
Segundo ele, talvez seja um sinal de que seria prudente colocar o golden spike do Antropoceno também no gelo. Uma amostra da Antártida Oriental, que registra mudanças químicas atmosféricas ligada à atividade humana, seria uma opção.
No entanto, mesmo que a Waters e seus colegas sejam capazes de encontrar um candidato politicamente viável para golden spike do Antropoceno, não é garantido que consigam aprová-lo. Existe um movimento de oposição na comunidade geológica para reconhecer, até mesmo, a existência do Antropoceno. Walker é um dos antagonistas.
Listamos aqui diversos tipos de sinais químicos e biológicos registrados no século 20, o que significa que os cientistas têm um leque de opções quando se trata de selecionar a fronteira do Antropoceno. Mas trata-se de uma faca de dois gumes.
Eles podem usar o aumento do plutônio radioativo perto do ano de 1950 para marcar o limite. mas muitos outros sinais químicos não mudaram muito entre as décadas de 1940 e 1950. “Algumas coisas mudaram a partir desta ‘fronteira’ em particular, e outras não”, diz Phil Gibbard, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
Se tantos indicadores permaneceram iguais, é correto estabelecer uma ruptura geológica?
E há um último ponto. Quando um golden spike é concedido, costuma se tornar motivo de orgulho para a comunidade local. É certamente o caso do penhasco em Meishan, na província chinesa de Zhejiang. “O que eles fizeram lá é impressionante”, diz Waters. “Tem cartazes em todos os lugares, um museu e até um cinema 3D que exibe um filme sobre a evolução da Terra.”
Waters questiona, no entanto, se um país ou cidade consideraria um privilégio ser reconhecido como golden spike do Antropoceno. “Pode parecer sugerir que seu país é o local em que a mudança antropogênica teve o maior impacto”, analisa. “Talvez a gente não veja uma corrida entre os países para reivindicar este prêmio.”
Ciberia // BBC