Uma professora de história em uma escola pública criou uma estratégia para envolver os alunos nas aulas. Ela está usando funk e rap para trazer um pouco do cotidiano difícil desses estudantes para a sala.
A professora Ane Sarinara quase desistiu do trabalho depois de presenciar cenas duras como uma arma sobre a mesa dela, um aluno saltado pela janela para fugir de traficante e uma aluna correndo para se livrar de abuso sexual de colegas no banheiro.
Mas em vez de fugir do problema ela reagiu. “Costumo dizer que não estudei para domesticar aluno. Querem que eu faça isso, mas eu não consigo”, conta ela à BBC.
Com o estilo diferente de ensinar, a professora também combate em sala de aula o preconceito contra negros, mulheres e a comunidade LGBT. Ane Sarinara usa raps como o de Tarja Preta, Falsa Abolição (Meninas Negras Não Brincam com Bonecas Pretas) para falar sobre racismo.
A ideia
A ideia surgiu quando ela se deparou com um estudante problemático, mas que era muito bom em algo: cantar funk.
“Outros professores tratavam isso como indisciplina. Só que eu sou da periferia, escuto funk desde que me conheço por gente”, lembra. “Sugeri que ele escrevesse um funk sobre a matéria – foi a forma que encontrei para ele fazer parte da aula.”
Quando o garoto apresentou o trabalho, ela percebeu que a tarefa havia “conquistado” não só a atenção dele, mas de toda a sala. “Um dos meninos se ofereceu para fazer o beatbox , outro pegou a lata de lixo, outros batucavam na mesa, batiam palmas”, recorda.
“Nisso, a diretora entrou para perguntar o que estava acontecendo. Para ela, parecia uma zona. Mas não era: a gente estava tendo aula.”
A professora descobriu naquele dia o que os alunos estão cansados de saber. “A escola está completamente fora da realidade deles, e a educação, sem significado, não tem sentido nenhum. É aquela ideia: você finge que explica, eles fingem que entendem”.
Resistência
Para quem questiona a opção por esses ritmos musicais, a professora de 27 anos, há oito na profissão, tem a resposta na ponta da língua: “os alunos gostam disso, é o que eles escutam e é a linguagem que eles sabem”.
Ane expandiu a experiência para além da música. Uma vez, por exemplo, dividiu os alunos em dois grupos e criou um tribunal: o primeiro representaria a polícia e o outro, o tráfico.
“Na periferia, a polícia é muito mal vista porque chega sempre com violência. Mas a ideia era mostrar para eles que o tráfico, que é quem acaba fazendo as melhorias que eles precisam na região em que o Estado é ausente, não tem só coisas positivas.”
Mas fugir do “padrão” também trouxe problemas: diretores e outros professores reclamavam de que Ane era “liberal demais”, e que seus alunos saíam achando que “podiam fazer tudo” nas outras aulas.
“Eles diziam: ‘alguns pais estão reclamando, se eles forem na Diretoria de Ensino você vai ter que se retirar da escola’. E eu respondia: ‘não vou mudar, não estou fazendo nada de errado’.”
A ideia cresceu
Além de não ter desistido, ela hoje aplica seu método também na Fundação Casa (instituição que abriga menores de idade infratores em São Paulo). Onde, aliás, enfrenta os mesmos problemas causados pelo modelo convencional.
“Quando entro na Fundação Casa, lembro das grades da minha escola. É igual. Não vejo diferença. A escola é uma prisão, a única diferença é que ela não tem seguranças. O resto é tudo igual. A mesma rotina, as mesmas grades, aquela lousa lá na frente, professor estressado.”
A professora
Nascida e criada na periferia de São Paulo, Ane sentiu na pele os desafios que seus alunos têm no dia a dia. Ela morava com a família em Jandira, na região metropolitana, mas aos quatro anos teve de ir morar em um orfanato na vizinha Carapicuíba. Viciado, seu tio passara a enfrentar problemas com traficantes, que ameaçaram a família toda.
No orfanato, conheceu o racismo, apanhou sem saber o porquê e enfrentou as amarras da escola, que para ela sempre teve “cara” de prisão. “A escola era uma prisão, é uma grande jaula. Você joga as pessoas lá, transforma todas elas em máquinas de obedecer sem questionar, mostra um mundo fora da realidade delas”.
“Era como eu me sentia dentro da escola: presa”, diz Ane.
Ane foi morar em Osasco – onde vive até hoje – e logo decidiu que queria ensinar. Mas com um objetivo: que seus alunos não sentissem o que ela sentia na escola. “Pensava: como eu gostaria que tivessem me dado essa aula? Foi por isso que comecei a tentar essas coisas diferentes.”
E decidiu permanecer na periferia para “devolver algo” algo ao lugar que a criou. “As pessoas costumam estudar e trabalhar para poder sair daqui. Mas eu não penso assim. Não tenho que sair desse lugar, eu quero transformar esse lugar.”
// Só Notícia Boa / BBC