Mais de 50 sem-teto moram em cemitério e chegam a dormir dentro de tumbas em São Paulo

O chão está forrado de penas pretas na área em que dois urubus disputam a carcaça de um cachorro morto. A cena é a recepção para quem chega ao que cerca de 50 pessoas chamam de casa: o cemitério da Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo.

Quem anda pela avenida central do local, administrado pela Prefeitura de São Paulo, tem o desafio de controlar os enjoos provocados pelo cheiro de animais em decomposição. Ossos de aves se estilhaçam sob os pés conforme o caminhar do visitante.

O ar de abandono é inegável ao longo dos 350 mil m² do cemitério, o segundo maior de São Paulo, com 21 mil sepulturas e gavetas, parte delas encobertas por um matagal que atinge a altura da cintura de um adulto.

O esperado silêncio do local é quebrado cerca de 500 metros após a entrada. A partir dali é possível avistar as primeiras lonas apoiadas em bambus e pedaços de madeira.

Ao menos cinco barracos foram erguidos dentro do cemitério, em uma espécie de vila precária. Os abrigos, mobiliados com sofá, cadeiras, varal para estender roupas e até enfeite de flor artificial, são a casa de dezenas de pessoas.

Um espaço entre os ossários – dois paredões onde são depositadas as ossadas retiradas das covas – foi convertido em banheiro pelos moradores. Junto a dejetos humanos, havia na área vômito, restos de comida, roupas e entulho.

Presença de crianças é vetada

Entre os sem-teto, há homens, mulheres – uma delas com deficiência física -, idosos e travestis. Os moradores da área afirmam vetar apenas a presença de crianças, devido ao ambiente insalubre e constante uso de drogas. Lúcio*, de 28 anos, não cansa de falar da saudade que sente de sua filha, de 8 anos.

Lúcio deixou Belo Horizonte (MG) com a mulher e a filha para trabalhar como vendedor no Brás, no centro de São Paulo. O negócio não deu certo, ele se divorciou e a criança voltou com a mãe para Minas.

“Sem trabalho, eu não consegui pagar aluguel e fui morar com a minha mãe na Vila Nova Cachoeirinha (mesmo bairro do cemitério). Mas ela colocou muitas regras e não deu certo. Fui para a rua, virei camelô e vim para cá há cinco meses“, conta o jovem com lágrimas nos olhos.

Se Lúcio é relativamente recente na vizinhança, Igor*, de 41 anos, 12 deles passados no cemitério, é um dos moradores mais antigos no local.

Sentado em um banquinho, ele destampa uma lata, tira dali um tubinho metálico, um pedaço de papel alumínio e um saco plástico, e cuidadosamente monta um cachimbo em que fuma duas pedras de crack, enquanto conta sua história à BBC, a poucos metros de algumas covas abertas.

“A primeira vez que fumei crack foi no fim de 1993. Mesmo fumando com frequência, trabalhei como operador de empilhadeira, comunicação visual em várias empresas, além de tradutor e intérprete de japonês no bairro da Liberdade”, conta.

Igor afirma ter aprendido japonês depois que, em 1995, foi morar no Japão, terra natal de sua avó paterna. A experiência internacional, no entanto, não terminou bem.

“Fui preso por tráfico de drogas, vandalismo, atropelamento e corrupção de menores. Fui deportado para o Brasil em dezembro de 1997. Minha família não quer mais saber de mim. Hoje, a gente só se vê em velório, casamento e festa”, diz.

Igor diz ter tentado recomeçar a vida no Brasil, mas o vício em drogas foi mais forte. “Eu só consigo trabalhar se tiver alguém 24 horas do meu lado me incentivando. Hoje, eu tiro meu sustento do lixo, catando reciclagem na rua. Num dia bom, eu pego bastante alumínio e tiro até R$ 100. Mas geralmente eu carrego 100 quilos de papel por R$ 20. É pouco, só o suficiente para manter meu vício”, diz ele.

Ele afirma que retira do lixo doméstico parte de suas roupas e alimentação, como bolos e alimentos jogados em pacotes fechados. Tudo dividido com os demais moradores da área.

Em uma manhã da última semana, um suco amarelo armazenado em uma garrafa PET suja de graxa passava de mão em mão para saciar a sede de Igor e os demais. Sem televisão, ele também se informa por meio de jornais que recolhe dos sacos de lixo. Parece adaptado ao ambiente, apesar da falta de conforto.

“O que mais me deixa triste é não poder abrir uma geladeira e ter o prazer de tomar uma Coca-Cola bem gelada ou comer uma fruta”, diz Igor.

Ele admite que, em “momentos de desespero”, cometeu furtos por uma pedra de crack. “Sou químico geral. Uso de esmalte a tinner. Já usei cristal dos Estados Unidos, ópio, haxixe e muita cocaína”, contou.

Noites dentro das tumbas

A presença de pragas, como ratos e baratas, é constante no local onde os sem-teto ergueram suas barracas. À noite, os insetos se multiplicam, mas a maior dificuldade é enfrentada no período de chuvas.

Durante o verão, as enxurradas molham os sofás velhos que eles usam para dormir e se reunir. Para se proteger, os moradores admitiram arrastar grandes pedras de mármore que cobrem os túmulos e dormir nas gavetas, ao lado dos caixões. Eles se recusaram a mostrar esses locais para a reportagem, mas a informação foi confirmada por funcionários.

A prefeitura de São Paulo reconhece que “é recorrente a montagem por dependentes químicos de tendas dentro e fora do Cemitério Vila Nova Cachoeirinha para o consumo de drogas”.

A administração diz que as barracas são “retiradas pelos funcionários, mas logo surgem outras no local”. Informou ainda que “aciona, sempre que necessário, o Centro de Zoonoses para tomar providências” em relação aos animais mortos e que há uma empresa responsável pela limpeza e retirada de mato da área.

A administração municipal não informou, no entanto, quanto gasta na manutenção da área, quantas pessoas trabalham ali nem desde quando existe essa ocupação dentro do cemitério, mas a reportagem sabe da presença desses sem-teto no local há pelo menos quatro anos.

Rodrigo*, de 40 anos, diz que passa pelo menos parte de seu dia no cemitério há 15 anos.

Ele conta que dorme no local, mas vai à casa dos pais, que vivem na região, todos os dias para tomar banho, almoçar e jantar. “Eu fiz um curso de hotelaria na Escola Técnica Federal. Eu fumo crack há 21 anos e queria arrumar emprego e sair dessa vida, mas eles [pais] sabem o quanto isso é impossível”, desabafa.

Sem visitas

Quem visita o cemitério da Vila Nova Cachoeirinha chega a ver os moradores da área circulando por ali. Eles tentam conseguir alguns trocados em troca da limpeza de um túmulo. Mas muito pouca gente se aproxima da região onde eles vivem.

“A prefeitura nunca apareceu para tentar nos ajudar, só vem para derrubar nossos barracos. A Pastoral (do Povo de Rua) visita a gente uma vez por ano para saber se estamos vivos e só a Polícia Militar aparece sempre para ‘dar um salve’ na gente”, diz um homem que pediu para não ser identificado, usando uma gíria para se referir a espancamentos dos agentes policiais.

“Já fui espancado e torturado aqui de joelhos durante horas por policiais. Eles nos chamam de viciados malditos, ficam perguntando onde estão os cachimbos e derrubam os barracos. Eles querem que a gente faça o quê? Vá para onde?”, questiona.

A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo e a Polícia Militar se posicionaram após a publicação da reportagem. “A Polícia Militar esclarece que as informações foram repassadas ao Comando PM local a fim de que as informações sejam apuradas”, diz a corporação em nota.

Um funcionário que trabalha há mais de 20 anos no cemitério disse à reportagem que há uma relação de respeito entre os sem-teto, os funcionários do cemitério e os poucos visitantes da área. “As pessoas têm muito medo de chegar perto deles. Mas eles ficam lá embaixo, não mexem com ninguém“, afirmou.

Após uma reforma que durou cinco anos, a capela do cemitério está fechada e também serve de abrigo para moradores de rua. A prefeitura informou que o local só é aberto “em datas especiais, como o Dia de Finados.” A administração do cemitério disse ainda que há três salas de velório, mas não explicou porque elas também estão fechadas.

Em dois dias de visita, a reportagem percorreu toda a área do cemitério e andou por quilômetros entre os túmulos. Nenhuma quadra estava livre do lixo.

Funcionários que pediram para não ser identificados disseram que não conseguem dar conta de limpar nem sequer metade da área. “Nós estamos em seis. Quando a gente termina de um lado, o outro já está com mato alto e todo sujo”, conta um deles.

Mas a área do cemitério pode estar diminuindo sem o conhecimento da Prefeitura de São Paulo. Moradores da região disseram à reportagem que a favela do Boi Malhado, no limite de uma das laterais do cemitério, está crescendo para dentro da área pública.

A reportagem identificou três casas em construção em um dos limites do cemitério, que não é demarcado por muros ou cercas. As casas começam, literalmente, onde terminam os túmulos.

A prefeitura disse que sabe que há casas dentro do cemitério e diz que já pediu a reintegração de posse à Justiça em 2016. “A pedido da Justiça, foi realizada audiência de conciliação em que os ocupantes do local concordaram em sair voluntariamente da área até janeiro de 2018, o que não foi cumprido. Já foi solicitada nova expedição de reintegração de posse”, informou a administração em nota.

*Os nomes dos entrevistados foram trocados pela reportagem da BBC Brasil para preservar a identidade deles.

Ciberia // BBC

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