STF retoma ação que pode inviabilizar 1.536 áreas quilombolas

ABr

Representantes de quilombolas defendem que titulação de terras é importante para garantir segurança e acesso a políticas públicas

O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quarta-feira (16) um julgamento que pode travar por prazo indeterminado a regularização de 1.536 territórios quilombolas e provocar uma mudança radical na política voltada a essas áreas.

A decisão é aguardada com grande expectativa pela bancada ruralista, favorável à revisão das regras atuais, e por comunidades quilombolas, que temem a inviabilização de novas demarcações – muitas das quais se arrastam há mais de uma década.

Segundo o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), 220 territórios quilombolas já foram titulados no país, e outros 1,5 mil estão em processo de regularização.

A Fundação Palmares diz já ter certificado mais de 2,6 mil comunidades, primeira etapa no processo de reconhecimento.

Autoidentificação em xeque

O STF analisará uma ação proposta em 2004 pelo então PFL (atual Democratas – DEM), na qual o partido questiona a validade de um decreto presidencial que define os critérios para a demarcação dessas áreas.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239, o DEM diz, entre outros pontos, que essas demarcações não poderiam ter sido regulamentadas pela Presidência, e sim pelo Congresso, e questiona a possibilidade de que os quilombos se autoidentifiquem.

O decreto que regula o tema foi assinado em 2003 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e mudou os trâmites da demarcação de áreas quilombolas, tornando-a uma competência do Incra. Até então, essa era uma atribuição da Fundação Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura.

O julgamento começou em 2012 e está empatado em um a um. O relator do caso, ministro Cesar Peluzo (que deixou o STF naquele mesmo ano), concordou com o pedido do DEM e votou pela inconstitucionalidade do decreto.

Já a ministra Rosa Weber avaliou que o decreto é legal. O julgamento foi paralisado em 2015, quando o ministro Dias Toffoli pediu vista do processo para estudá-lo melhor.

Para Ivo Fonseca, quilombola da comunidade Frechal, no Maranhão, e membro da Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq), caso o STF considere o decreto inconstitucional, a violência no campo deve aumentar.

“Qualquer que seja o resultado, não deixaremos de pleitear nossas terras. Desde que chegamos ao Brasil como migrantes forçados, é o que sempre fizemos – e é o que vamos continuar a fazer”, ele diz à BBC Brasil.

Fonseca afirma que a titulação das terras é importante por garantir às comunidades segurança e acesso a políticas públicas. “Você tem liberdade de ir e vir, de construir, de ter desenvolvimento produtivo – você tem acesso a um conjunto de elementos que ajuda a ser cidadão neste país”, diz.

Segundo ele, alguns quilombos não regularizados enfrentam dificuldades até para construir poços artesianos ou escolas. O quilombola diz esperar que, caso o STF decida que o decreto é inconstitucional, que ao menos preserve o status das áreas já demarcadas – caso de seu quilombo no Maranhão.

“Margem para fraudes”

O DEM e a bancada ruralista, por sua vez, afirmam que o decreto dá margem para fraudes e deve ser derrubado. Para o deputado federal Alceu Moreira (PMDB-RS), um dos principais líderes ruralistas no Congresso, o processo atual de demarcação realiza “uma reforma agrária por outros meios”.

Segundo Moreira, antropólogos contratados pelo Incra sempre chancelam as posições das comunidades que reivindicam terras, em vez de avaliar as demandas com base em documentos históricos. “A grande falcatrua está no processo de autodeclaração”, ele diz à BBC Brasil.

Ele afirma que em Osório (RS), sua cidade natal, proprietários rurais correm o risco de perder terras onde vivem há várias gerações “porque um belo dia oito ou dez pessoas resolveram que eram quilombolas, orientadas por ONGs e professores de universidade”.

O também ruralista e deputado federal Luis Carlos Heinze (PP-RS) diz esperar que o STF defina no julgamento um “marco temporal” para todas as demarcações de áreas quilombolas e indígenas.

Segundo o princípio do marco temporal, só teriam direito a reivindicar terras indígenas e quilombolas os grupos que as ocupassem numa data específica. Para Heinze, a data deve ser a mesma da promulgação da Constituição: 5 de outubro de 1988.

O princípio do marco temporal – já adotado pelo Supremo em julgamento sobre a Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima – inviabilizaria grande parte das demarcações em curso e é combatido por indígenas e quilombolas, muitos dos quais dizem ter sido expulsos de seus territórios originais antes de 1988.

Cristiano Martins / Agência Pará

Comunidades quilombolas temem decisão do STF inviabilize novas demarcações

Desfechos possíveis

Segundo o jurista Carlos Marés, especialista em direito socioambiental e professor da PUC-PR, se o STF decidir que o decreto é constitucional – decisão que ele considera mais provável – as regras continuarão como estão.

Já se a corte avaliar que o decreto é inconstitucional, ele diz que o país ficaria sem norma para definir áreas quilombolas. Na sua avaliação, terras já demarcadas não seriam afetadas, e a continuidade das demarcações dependeria da vontade política do governo. “O governo poderia concluir os processos que não têm litígio e, nos demais, teria de analisá-los um por um para ver qual o problema travando”, explica.

Segundo Marés, mesmo que o STF acolha os argumentos do DEM, o direito dos quilombolas às suas terras continuaria assegurado pela Constituição.

Já o ISA (Instituto Socioambiental), que é contrário à petição do DEM, afirma que o STF pode “deixar sem sustentação jurídica todas as terras já tituladas” se avaliar que o decreto é inconstitucional.

O instituto diz que, nesse cenário, o STF na prática inviabilizaria novas titulações – já que é improvável que um Congresso com forte presença ruralista aprove qualquer lei substituindo o decreto.

Questão de interpretação

A disputa entre quilombolas e ruralistas expõe divergências quanto à interpretação legal do conceito de quilombo.

No passado, o termo era associado no Brasil a grupos de escravos fugidos e seus descendentes. A Constituição de 1988 tratou do tema ao determinar que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”.

Em sua petição ao STF, o DEM diz que a Carta exige a comprovação “da remanescência – e não da descendência – das comunidades dos quilombos para que fossem emitidos os títulos”. Ou seja, o partido diz que as comunidades devem provar que são oriundas de grupos de escravos fugidos.

Já a Associação Brasileira de Antropologia (Aba) divulgou em 1994 um documento defendendo que a expressão remanescente de quilombo não se referia apenas a grupos “constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados”, mas também a comunidades “que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”.

Segundo essa interpretação, hoje predominante entre os quilombolas brasileiros, o termo quilombo se aplica aos contextos de várias comunidades negras de diferentes partes do país.

Processos parados

Desde 1995, quando o governo federal demarcou pela primeira vez uma comunidade quilombola, uma minoria dos grupos conseguiu os títulos das terras. Vários processos se arrastam há mais de uma década e foram parar na Justiça.

O Executivo tem feito pouco para destravá-los. Em abril, a BBC Brasil publicou uma reportagem mostrando que o governo Michel Temer havia ordenado a suspensão de titulações de territórios quilombolas até que o STF retomasse o julgamento da ação do DEM.

A decisão, comunicada pela Casa Civil ao Ministério Público Federal em ofício, ocorre num momento em que o governo atende a várias demandas da bancada ruralista em troca de apoio político no Congresso.

// BBC

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