O professor Carlos Decotteli mal havia sido anunciado como novo ministro da Educação quando passou a ter suas credenciais acadêmicas contestadas. Primeiro, foi revelado que ele nunca havia completado seu doutorado, ao contrário do que sugeria seu currículo Lattes. Depois, foi acusado de plágio na sua dissertação de mestrado.
Agora, nesta segunda-feira (29/06), também ficou claro que o professor distorceu o retrato que pintou sobre seu período de pesquisas numa universidade da Alemanha.
Questionada sobre a experiência do ministro na instituição, a Bergische Universität Wuppertal confirmou que o ministro passou apenas três meses na instituição, a partir de janeiro de 2016, realizando uma pesquisa sob a orientação de uma professora responsável pela cadeira de teoria do design.
O período apontado pela universidade é significativamente menor do que aquele que era apontado pelo ministro no seu currículo Lattes até mais cedo nesta segunda-feira. A plataforma concentra dados de acadêmicos no Brasil, e a responsabilidade pelo preenchimento é dos próprios autores.
Após a controvérsia envolvendo seu doutorado, o ministro apagou vários dados, mas antes havia atestado uma ligação com a universidade entre 2015 e 2017 – período bem superior aos três meses –, afirmando que a experiência constituía um “pós-doutorado”.
Nesta segunda-feira, o ministro eliminou todas as frases que falavam de um pós-doutorado e removeu menções que especificavam seu período em Wuppertal. Ele substituiu, por exemplo, a frase “realizou seu pós-doutorado em Wuppertal” por “construiu um projeto de pesquisa que foi submetido à Universidade de Wuppertal”.
No seu Linkedln, outro exagero: antes de realizar diversas edições no fim de semana, o currículo do ministro na rede social parecia sugerir que ele havia atuado como professor na universidade alemã, e não como um acadêmico que usou a instituição para realizar uma pesquisa. O perfil no Linkedln desapareceu por completo nesta segunda-feira. A universidade não confirmou qualquer atividade de Decotelli como docente no local.
A universidade também apontou que ele não recebeu qualquer título da instituição. Até nem poderia neste caso, já que não existe algo como a emissão de um “título de pós-doutorado” na Alemanha, ou algo como “pós-doutor” no país. O pós-doutorado é um período para aprofundar pesquisa ou até mesmo de estágio após a conclusão de um doutorado. Não seria emitido qualquer documento nesse sentido nem mesmo para um doutor com um título legítimo.
Na Alemanha, doutores costumam usar o período como uma fase de transição, para se preparar para assumir alguma posição de professor numa universidade ou centro de pesquisa, num período que costuma variar de seis meses até dois anos, dependendo da área, embora não haja uma regra que fixe um período obrigatório.
Em nota distribuída pelo Ministério da Educação no sábado, com foco nas acusações de plágio, Decotelli já havia adiantado que não havia recebido nenhum título da Universidade de Wuppertal.
Por outro lado, ele afirmou que a íntegra do relatório resultante da pesquisa, elaborado em 2017, só poderia ser acessado presencialmente “no cartório de registros acadêmicos na cidade de Colônia”, “por questões de sigilo”. Mas o relatório estava disponível no site da Fundação Getúlio Vargas (FGV), onde Decotelli atuou em cursos de educação continuada e programas de formação de executivos.
O documento de “pesquisa de pós-doutorado”, como a capa indica, trata das atividades de uma fábrica de maquinário agrícola alemã. Tem 97 páginas, mas 60 são de anexos que indicam endereços e contatos de fabricantes ou revendedores de máquinas no Brasil.
Segundo a Universidade de Wuppertal, Decotelli desenvolveu uma pesquisa “com foco em metodologia, planejamento e estratégia“.
A universidade não respondeu aos questionamentos da DW Brasil sobre como Decotelli teria assegurado realizar seu pós-doutorado na instituição sem ter de fato concluído um doutorado. Questionada se foi induzida ao erro pelo ministro, a instituição também não respondeu. Disse apenas que, “infelizmente, não podemos fazer declarações sobre títulos adquiridos no Brasil”.
As notícias da universidade sobre Decotelli também incluíam a informação de que o ministro era professor da FGV, sugerindo que a instituição alemã acreditava que ele era de fato um docente efetivo da fundação brasileira. No entanto, a FGV informou que Decotelli nunca atuou como professor de nenhuma das escolas da fundação, apenas em cursos de educação continuada.
Uma notícia de 2015 no site da universidade, que fala sobre a ida de Decotelli à Alemanha em janeiro do ano seguinte, também se refere ao brasileiro como “professor doutor”. Outra, de 2016, também se refere ao futuro ministro como “post doc Prof. Dr. Decotelli”.
O título de doutor é altamente respeitado na Alemanha e só pode ser usado por quem tem doutorado. É levado tão a sério no país europeu que pode inclusive constar em documentos como passaporte, se o detentor do documento assim desejar – e provar o título.
No período em que esteve na Alemanha, Decotelli também concedeu uma entrevista ao site da professora Brigitte Wolf, de Wuppertal, sua orientadora na pesquisa sobre máquinas agrícolas, falando sobre sua experiência no país europeu. Na ocasião, ele elogiou a forma como empresas e universidades da Alemanha cooperam na condução de pesquisas e criticou o modo como isso ocorre no Brasil.
“No Brasil, a pesquisa é realizada em prol de instituições e autoridades públicas, os orçamentos estão sujeitos a diretrizes políticas, e os resultados da pesquisa permanecem no ambiente acadêmico. Na Alemanha, resultados de pesquisas não são boicotados por greves trabalhistas, como no Brasil.”
Em um dos textos no site da professora, que hoje está aposentada, Decotelli também é apresentado como “professor doutor”.
Sob pressão
A nova crise envolvendo o currículo de Decotelli estourou na última sexta-feira, quando o reitor da Universidade de Rosário, na Argentina, rebateu uma mensagem do presidente Jair Bolsonaro que havia apresentado Decotelli como doutor pela instituição.
“Precisamos esclarecer que Carlos Alberto Decotelli da Silva não obteve na @unroficial o título de doutor mencionado nesta comunicação”, escreveu no Twitter o reitor Franco Bartolacci, da Universidade Nacional de Rosário, em resposta ao tuíte de Bolsonaro que mencionava o currículo do novo ministro. Bolsonaro também havia informado que Decotelli era “pós-doutor (sic) pela Univerisdade de Wuppertal”.
“Ele [Decotelli] cursou o doutorado, mas não finalizou, portanto não completou os requisitos exigidos para obter a titulação de doutor na Universidade Nacional de Rosário”, disse posteriormente o reitor, acrescentando que a tese apresentada por Decotelli foi reprovada antes mesmo de chegar à banca avaliadora. “Ela foi avaliada negativamente pelo jurado constituído para tal efeito [avaliar o trabalho]”, disse.
Depois da publicação do reitor argentino, o MEC chegou a encaminhar para diversos veículos um certificado para atestar que “o ministro Carlos Alberto Decotelli da Silva concluiu, em fevereiro de 2009, todos os créditos do doutorado em Administração pela Faculdade de Ciências Econômicas e Estatística da Universidade Nacional de Rosário, na Argentina”.
No entanto, o documento só aponta que ele concluiu as disciplinas do programa, e não esclarece se o ministro apresentou uma tese e obteve a titulação de doutor. Apenas quando a imprensa apontou que o documento em si não constituía uma prova do título de doutor é que Decotelli admitiu nunca ter concluído seu doutorado. Depois, disso ele alterou seu currículo Lattes, excluindo informações como o título da tese e o nome do orientador. Também incluiu a informação “sem defesa de tese”.
No sábado, foi a vez de aparecerem indícios de plágio na dissertação de mestrado de Decotelli. Eles foram encontrados pelo professor universitário Thomas Conti, do Insper, que afirma que a dissertação de Decotelli contém passagens inteiras de um relatório administrativo do Banrisul na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), sem qualquer tipo de citação ou referência bibliográfica.
Conti divulgou o achado em sua conta no Twitter, onde publicou trechos comparando a dissertação e o relatório da CVM.
Em resposta, o Ministério da Educação disse, em comunicado, que “o ministro refuta as alegações de dolo, informa que o trabalho foi aprovado pela instituição de ensino e que procurou creditar todos os pesquisadores e autores que serviram de referência“. “Caso tenha cometido quaisquer omissões, estas se deveram a falhas técnicas ou metodológicas”, acrescenta a nota.
Decotelli é a mais recente autoridade brasileira envolvida numa controvérsia sobre currículos acadêmicos. No ano passado, o site The Intercept Brasil apontou que o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) assinou um artigo num jornal em 2012 como se tivesse um mestrado na prestigiada Universidade Yale, dos Estados Unidos. Ao longo de anos, a informação foi repetida por diversos veículos de imprensa. No entanto, o ministro nunca obteve qualquer título na instituição americana. Salles afirmou que o erro original partiu de sua assessoria.
Em 2019, o governador fluminense Wilson Witzel também foi acusado de maquiar seu currículo, indicando que teria estudado em Harvard, nos EUA. Após ser confrontando com o fato de que não havia registros que apontassem qualquer ligação dele com a universidade, Witzel disse que mencionou Harvard porque tinha a intenção de estudar lá, mas que os planos foram cancelados após sua eleição. Ele não explicou por que chegou até mesmo a colocar o nome de um orientador americano em seu currículo Lattes.