Enquanto a vacina que poderá conter a disseminação do novo coronavírus não sai, o mundo seguirá lavando as mãos. exaustivamente, abusando do álcool gel (ou de desinfetantes poderosos), caprichando na limpeza de tudo o que entra em casa e usando máscaras. Logo depois de identificados os primeiros casos na cidade chinesa de Wuhan — quando tudo começou—, chegou-se a desconfiar do que seria um quase exagero.
Nos últimos meses, os excessos ganharam contornos de neurose. Hoje, contudo, parecem ter sido incorporados à rotina e já são tratados com certa normalidade. Para médicos, os novos hábitos precisam fazer parte da vida das sociedades no chamado “novo normal” pós-pandemia. Não apenas para evitar a contaminação pela Covid-19, mas para protegê-las de outros vírus e bactérias.
Estamos falando de gripes comuns, vírus de influenza, infecções gastrointestinais e até tuberculose, doenças que matam muita gente todos os anos — afirma o catedrático de Epidemiologia Veterinária e Dados de Ciência da Universidade de Edimburgo, Rowland Kao.
Já há um punhado de estudos acadêmicos realizados em diversos países que mostram que os cuidados sem precedentes que o mundo adotou contra o novo coronavírus podem estar por trás de uma queda significativa dos números de casos registrados de influenza no Planeta.
A publicação “COVID-19 e a melhora na prevenção de infecções hospitalares”, dos médicos chineses Ling-Qun Hu, Jin Wang, Anna Huang, Danzhao Wang e Jingping Wang, é um deles. “Estamos agora entrando em um período de transição de reabertura gradual da economia pelo mundo.
Questões vitais
Por isso, questões vitais precisam ser consideradas: 1) Será que o uso de máscaras cirúrgicas tanto por prestadores de serviços de saúde, quanto por pacientes em instituições médicas não deveria ser exigidos até que uma vacina ou tratamento seja desenvolvido? 2) Será que a atual política do uso universal de máscaras não deveria se tornar o novo normal?
“Os dois itens podem se confirmar benéficos depois da pandemia ao prevenir infecções hospitalares respiratórias, especialmente durante a temporada anual da gripe”, diz o documento que apareceu na na PubMed Central, plataforma criada para a divulgação de trabalhos sobre a Covid-19.
Os especialistas defendem medidas adicionais para proteger os funcionários de hospitais, que também estão submetidos a limitações de distanciamento social e espaços físicos, como dentro de elevadores e consultórios.
“Para combater as infecções hospitalares, propomos que se mantenha o uso de máscaras de proteção como um padrão daqui para frente”, afirma o texto, que ainda explica que o contato físico é o mecanismo primário de exposição de pessoas saudáveis a síndromes respiratórias agudas. Eles dizem que as máscaras serão uma das maneiras mais eficientes de reduzir o peso de um possível ressurgimento da Covid-19 e da gripe comum durante o outono no hemisfério norte.
No seu relatório “Distanciamento social contra a Covid-19: implicações para o controle da influenza”, os médicos sul-coreanos Ji Yun Noh, Hye Seong, Jing Gu Yoon, Joon Young Song, Hee Jin Cheng e Woo Joo Kim também relacionam a queda dos número de casos de influenza às restrições impostas pelo governo para o contato entre as pessoas. “Durante a temporada 2019-2020, a epidemia de influenza foi excepcionalmente curta e o pico epidêmico foi baixo em comparação com as temporadas anteriores na Coreia do Sul”, diz o documento.
Embora reconheçam que múltiplos fatores podem ter afetado o tamanho da epidemia de influenza, os especialistas acreditam que a aplicação abrangente de intervenções não-farmacêuticas, o que inclui máscaras e o distanciamento social, em resposta à Covid-19, parecem ter sido razão maior para a redução do número de casos.
“Medidas de distanciamento social de fácil implementação e aceitabilidade devem ser adotadas mesmo que vacina para a síndrome respiratória aguda coronavírus 2 (SARS-CoV-2) seja encontrada no futuro. A definição de instruções de distanciamento social no ambiente de trabalho é necessária e vai contribuir para reduzir o peso da influenza, especialmente em ano de incompatibilidade de vacina”.
Medidas eficientes
Dados coletados preliminarmente pelas Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS) indicam que as várias medidas de higiene e distanciamento promovidas pelos países-membros para reduzir a transmissão da Covid-19 provavelmente ajudaram a mitigar a disseminação da influenza.
“Globalmente, a atividade da influenza foi registrada em níveis mais baixos do que os esperados a época do ano. Em zonas temperadas, no hemisfério norte, estiveram nos níveis inter-sazonais, enquanto, no hemisfério sul, a temporada não começou”, diz o relatório de junho da OMS. Nos países do Caribe e da América Central, foram detectadas nenhuma ou baixas incidências de influeza. N
a América do Sul e na África, casos de vírus de influenza não foram relatados, assim como em vários países da Ásia, segundo o documento.
Mesmo nos países em que o distanciamento social foi flexibilizado, ou suspenso, as pessoas têm procurado se manter uns passos atrás do que fariam. Isso é uma boa notícia, segundo o professor Kao. Mas ele destaca que é preciso que os governos façam campanhas, se quiserem que as pessoas sigam essas orientações no longo prazo.
“Todo mundo mudou depressa de hábitos dadas as incertezas e os riscos que o novo coronavírus impõe à população. Mas as pessoas cansam. Eu mesmo acho que já não lavo as mãos com a mesma frequência que 100 dias atrás. Os governos precisam convencer as pessoas da importância dessas medidas. A oportunidade está aí”, afirmou Kao.
O fato é que o consumo de sabões e sabonetes líquidos deu um salto. Cresceu 194% este ao, segundo dados do setor. As máscaras, além das caseiras, estão em boa parte das vitrines de lojas que jamais confeccionaram o produto. Até as grandes marcas resolveram se lançar na produção deste novo item essencial.
É claro que o alcance dos novos hábitos varia de país a país, assim como a necessidade de reforçá-lo. Para Kao, erradicar doenças como a Covid-19 ou os vírus de influenza significa que todo o mundo precisa agir em conjunto. Não adianta alguns países adotarem medidas de higiene e isolamento e outros não.
Mesmo com todos os cuidados e um novo protocolo de uso de equipamentos de proteção em hospitais, a estimativa do Sistema Nacional de Saúde, o SUS britânico, é a de que 20% dos pacientes com Covid-19, internados em hospitais na Inglaterra, contraíram a doença durante a pandemia, enquanto faziam tratamentos para outras enfermidades.
Parte das contaminações se deu a partir de funcionários assintomáticos dos hospitais, que não sabiam ter tido a doença. A outra parte teria vindo de pacientes que já estavam infectados.
// RFI