‘Kit covid é kit ilusão’: os dados que apontam riscos e falta de eficácia do suposto tratamento

Marcelo Camargo / ABr

Durante a Peste Negra que assolou a Europa no século 14, os médicos recorreram aos mais diversos “tratamentos” para lidar com as doenças. Alguns apostaram numa técnica de esfregar cebolas ou carne de cobra nos furúnculos que apareciam na pele. Outros sugeriam que os pacientes sentassem perto de fogueiras ou de fezes para expulsar a doença do corpo.

Mais recentemente, quando a gripe espanhola de 1918 se espalhou pelos continentes, também não faltaram terapias milagrosas para lidar com a crise sanitária. Alguns especialistas lançaram fórmulas à base de formol, canela e até flores de jasmim amarelo para “curar” a doença que matou milhões de pessoas no mundo todo.

O mesmo cenário volta a se repetir agora, durante a pandemia de covid-19. Em meio a um número crescente de casos e mortes, parte dos médicos, parte da população e até o Ministério da Saúde defenderam um suposto tratamento precoce contra o coronavírus cuja eficácia não foi comprovada até o momento.

Segundo diversos estudos rigorosos realizados ao redor do mundo, medicamentos que integram esse “kit covid” ofertado nas fases iniciais da doença no Brasil já se mostraram inclusive ineficazes ou até mais prejudiciais do que benéficos quando administrados nos quadros leves, moderados e graves de covid-19.

Ao longo dos últimos meses, diversas entidades nacionais e internacionais se posicionaram contra o coquetel de medicamentos promovido pelo governo Bolsonaro, que inclui a hidroxicloroquina, a azitromicina, a ivermectina e a nitazoxanida, além dos suplementos de zinco e das vitaminas C e D.

Atualmente, esse mix farmacológico não é reconhecido ou chega a ser contra-indicado por entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos e da Europa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).

Mas antes de entrar nos detalhes sobre como tantas instituições chegaram a essa conclusão de que esses remédios não são eficazes e de que não existe tratamento precoce que funcione contra a covid-19, é importante explicar como surge um novo remédio contra determinada doença e como esse processo pode ser acelerado durante uma pandemia.

Da bancada do laboratório à prateleira da farmácia

Geralmente, a descoberta de um novo tratamento se inicia com a pesquisa básica. Um grupo de cientistas começa a estudar uma molécula para entender suas características e seus potenciais de uso.

Essa substância, então, é testada num pequeno conjunto de células na bancada do laboratório. O objetivo aqui é entender se as coisas funcionam como o esperado e se aquele composto tem alguma ação interessante dentro de um sistema biológico simples.

Se tudo der certo, a próxima etapa inclui testes com cobaias. A nova molécula é administrada em camundongos, macacos e outros animais que apresentam algumas características semelhantes ao que ocorre no corpo humano.

Caso a candidata apresente bons resultados, ela passa para a nova etapa: os testes clínicos. Esses estudos são divididos em três fases, envolvem centenas ou até milhares de seres humanos e têm como objetivo final garantir a segurança e a eficácia daquela nova formulação.

O teste clínico de fase 3 costuma ser o mais rígido e amplo de todos. Para comprovar que aquele novo medicamento é realmente bom, os cientistas dividem os voluntários em pelo menos dois grupos.

O primeiro deles toma doses do remédio de verdade. Já o segundo vai receber uma substância placebo (sem nenhum efeito no organismo) ou o melhor tratamento existente até aquele momento contra a doença que o novo candidato a farmáco promete combater.

O ideal é que nem os cientistas, muito menos os participantes do estudo, saibam quem integra qual grupo. Isso evita vieses ou o chamado efeito placebo, quando a pessoa se sente melhor por acreditar que foi tratada, mesmo quando recebeu um comprimido de farinha.

O que acabamos de descrever aqui é um estudo randomizado (os voluntários são sorteados para entrar em um esquema terapêutico ou no outro), duplo cego (os participantes e os cientistas não fazem ideia de quem recebeu o quê) e controlado (uma parte do grupo tomou placebo ou a melhor terapia disponível até então). É considerado o padrão-ouro das pesquisas.

Depois de todo esse rito, os resultados dos dois grupos são comparados. O esperado é que a turma sorteada para tomar o candidato à medicamento esteja melhor em relação a quem fez parte do grupo placebo. Também é essencial que a nova molécula não provoque efeitos colaterais graves demais.

Os relatos de todo esse esforço são então publicados num jornal científico, onde eles passam por uma revisão de especialistas independentes e, caso sejam aprovados, poderão ser lidos, contestados e repetidos por outros grupos de pesquisa em qualquer lugar do mundo.

Se os resultados forem bons, os donos daquele novo produto entram com um pedido de aprovação nas agências regulatórias, como a Anvisa no Brasil e o FDA nos Estados Unidos. Se essas entidades estiverem de acordo com o que foi apresentado, elas liberam o uso do novo medicamento no país.

Para você ter ideia como esse processo é complicado e criterioso, de cada 5.000 moléculas testadas em células e cobaias, apenas uma consegue passar por todas as etapas e chegar às farmácias e aos hospitais. Esse processo dura, em geral, 12 anos e exige um investimento de US$ 2,6 bilhões.

Hidroxicloroquina, uma droga apadrinhada por Trump e Bolsonaro

O potencial da hidroxicloroquina contra a covid-19 começou a ser explorado a partir de um pequeno trabalho publicado na China. Mas ela só ganhou as manchetes com a publicação de um estudo feito pelo médico francês Didier Raoult e por sua equipe.

Divulgada em março de 2020, a pesquisa envolvia 36 pacientes e afirmava que o remédio, usado no tratamento de doenças como malária, lúpus e artrite reumatoide, era capaz de diminuir a carga de coronavírus no organismo. E mais: de acordo com as conclusões do experimento, esses benefícios eram ainda maiores se a azitromicina (um antibiótico) fosse administrada em conjunto.

Apesar da esperança inicial, os cientistas rapidamente começaram a notar que havia algo muito estranho nessa história. “A publicação do artigo foi muito criticada, pois estava cheia de erros metodológicos e coisas sem explicação”, relembra o médico Jose Gallucci-Neto, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Em setembro, Raoult foi denunciado pela Sociedade de Patologia Infecciosa de Língua Francesa (SPILF) por “promoção indevida de medicamento”. Agora em janeiro, o médico admitiu numa carta ter excluído alguns voluntários do resultado da pesquisa.

“Ao avaliar esses dados completos, com esses participantes que ficaram de fora do artigo original, o resultado da hidroxicloroquina é negativo e não houve redução de mortalidade, necessidade de UTI ou oxigenação”, completa Gallucci-Neto.

Mesmo com essas suspeitas iniciais e as correções posteriores, o estrago já estava feito. Ainda no primeiro semestre de 2020, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, bancou a ideia de Raoult. O então presidente escreveu que a hidroxicloroquina “deveria ser colocada em uso imediatamente, pois pessoas estão morrendo”.

As convicções de Trump encontraram ressonância em outro ponto do continente americano, mais especificamente no Brasil. O presidente Jair Bolsonaro também fez ampla defesa do uso da hidroxicloroquina contra a covid-19.

No dia 21 de março, ele publicou um vídeo no Twitter intitulado “Hospital Albert Einstein e a possível cura dos pacientes com o covid-19“, em que anuncia que o laboratório químico e farmacêutico do Exército Brasileiro iria ampliar a fabricação desse medicamento.

Ao longo dos meses, não faltaram demonstrações de apoio à hidroxicloroquina. Bolsonaro levou o fármaco a tiracolo em diversos vídeos e transmissões ao vivo.

A hidroxicloroquina também foi um dos motivos centrais da queda de dois ministros da Saúde. Os médicos Luiz Henrique Mandetta (que dirigiu o ministério entre 1º de janeiro de 2019 a 16 de abril de 2020) e Nelson Teich (que liderou a pasta de 17 de abril a 15 de maio de 2020) saíram após pressões e discordâncias sobre o uso amplo desse medicamento para combater a pandemia no país.

Mas o que diz a ciência sobre a hidroxicloroquina?

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil entendem que era até compreensível usar a hidroxicloroquina nos momentos iniciais da pandemia, em meados de março, abril e maio de 2020 — afinal, os médicos estavam tateando no escuro e lidavam com uma doença sobre a qual não havia experiência nenhuma.

A partir de junho e julho, porém, começaram a ser publicados estudos mais robustos a respeito do tema. Eles mostravam que esse remédio realmente não funcionava em qualquer estágio da doença, seja antes do início dos sintomas, seja no leito de uma UTI.

“Atualmente, temos uma enorme quantidade de evidências mostrando que a hidroxicloroquina não é efetiva como tratamento da doença nos quadros graves, nos leves ou como profilaxia, para impedir que o vírus invada nossas células”, afirma a pneumologista brasileira Letícia Kawano-Dourado, que faz parte do painel da Organização Mundial da Saúde (OMS) que desenvolve diretrizes de tratamento contra a covid-19.

Nos últimos meses, vários estudos foram publicados a respeito do tema. Um dos mais importante deles foi feito no Reino Unido e é conhecido como Recovery Trial. Numa análise de mais de 4.500 pacientes hospitalizados, o uso de hidroxicloroquina e azitromicina não trouxe benefício algum.

O mesmo resultado foi observado na pesquisa da Coalizão Covid-19 Brasil, com cerca de 500 voluntários brasileiros com a infecção pelo coronavírus em estágios leves ou moderados. Mais uma vez, a dupla de fármacos não mostrou o efeito desejado.

Além disso, os tratamentos testados foram associados a efeitos adversos mais frequentes, principalmente aumento do chamado intervalo QT, um sinal de maior risco para arritmia detectado por eletrocardiograma; e aumento de enzimas TGO/TGP no sangue, alteração que pode indicar lesão no fígado.

Segundo documento da Sociedade Brasileira de Infectologia, outros efeitos adversos são retinopatias, hipoglicemia grave e toxidade cardíaca. Por isso, é “exigido contínuo monitoramento médico dos indivíduos em uso da cloroquina ou hidroxicloroquina”. E outros efeitos colaterais possíveis são diarreia, náusea, mudanças de humor e feridas na pele.

Numa nota informativa publicada em seu site, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) também orienta sobre ineficácia do uso desse esquema terapêutico:

“As evidências disponíveis sobre benefícios do uso de cloroquina ou hidroxicloroquina são insuficientes, a maioria das pesquisas até agora sugere que não há benefício e já foram emitidos alertas sobre efeitos colaterais do medicamento. Por isso, enquanto não haja evidências científicas de melhor qualidade sobre a eficácia e segurança desses medicamentos, a Opas recomenda que eles sejam usados apenas no contexto de estudos devidamente registrados, aprovados e eticamente aceitáveis.”

Kawano-Dourado conta que o uso do fármaco contra o coronavírus é um assunto superado na maioria dos lugares. “A hidroxicloroquina e outras representantes do tratamento precoce seguem em pauta apenas em alguns países subdesenvolvidos, como Brasil, Índia, Costa do Marfim e Filipinas.”

// BBC

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