Cientista brasileira tenta decifrar mistério de quatis que usam sabonete

Em uma das vezes em que saiu a campo para aprofundar sua pesquisa, Aline Gasco, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), se deparou com situação relativamente comum na Ciência: procurava uma coisa e achou outra.

Sua intenção inicial era estudar a difícil fase para as fêmeas de quatis em que elas se separam do bando para ter seus filhotes em ninhos nas árvores. Acabou encontrando, no entanto, um grupo desses animais que usava produtos voltados à higiene humana, como sabonetes, sabões e até detergentes e desengordurantes.

Com a ajuda de outros especialistas, a pesquisadora chegou à hipótese de que eles utilizem esses produtos para limpeza e automedicação contra ectoparasitas – aqueles que se instalam fora do corpo do hospedeiro, como, por exemplo, piolhos, pulgas, carrapatos ou até bactérias e fungos. Mas segue estudando o fenômeno.

A descoberta ocorreu na Ilha do Campeche, no município de Florianópolis, em Santa Catarina. A bióloga foi parar lá depois de ter trabalhado entre 2011 e 2014 no Parque Ecológico do Tietê, na zona leste de São Paulo, onde estudava os hábitos de nidificação, o processo de construção dos ninhos, e os comportamentos por trás do sistema de saída e retorno da fêmea de quati do seu grupo social matrilinear.

O que explica o uso de sabão?

A orientadora de Gasco, Patrícia Ferreira Monticelli, conta que sua aluna, “uma ótima etóloga” – especialista que estuda o comportamento social e individual dos animais em seu habitat natural -, percebeu que os quatis da ilha do Campeche tinham muito interesse pelos produtos sanitários humanos. “Depois de observá-los, ela me perguntou se esse hábito poderia ser caracterizado como cultura”, conta.

“Fomos então atrás de outros pesquisadores, que pudessem nos ajudar a fazer uma coleta de dados cuidadosa.”

Nessa busca, falaram com a professora Briseida Dogo de Resende, do Instituto de Psicologia da USP (IP-USP), que estuda a etologia a partir de primatas e sob a abordagem da psicologia evolucionista do comportamento.

“Além disso, esbarramos mais tarde, quando a coleta já havia sido feita, como o pesquisador Andrés Manuel Pérez-Acosta, da Universidad del Rosario, da Colômbia, que acabou sendo nosso colaborador direto”, diz Monticelli.

A ilha do Campeche possui a maior concentração de oficinas líticas (locais usados por povos pré-históricos para fabricar artefatos) e gravuras rupestres do litoral brasileiro e, por isso, é um sítio arqueológico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que administra o local em cooperação com a Associação Couto de Magalhães (Acompeche).

Portanto, trata-se de um local com estrutura turística e constante visitação. “Os produtos utilizados pelos animais são levados para a ilha para limpeza e manutenção dos espaços e estruturas usados pelos turistas e visitantes”, explica Gasco.

Os quatis esfregam os produtos pelo corpo, em um ato chamado tecnicamente pelos pesquisadores de unção. “Ele é realizado entre o grupo em sessões que duram de alguns segundos até cinco minutos”, revela a pesquisadora.

“Normalmente, usam nas patas, boca, nariz e os dentes para aplicá-los na região genital e na cauda. É nessas áreas úmidas e quentes do corpo que normalmente se desenvolvem bactérias e fungos.”

Automedicação entre quatis

Para os pesquisadores, o comportamento da espécie observado na ilha do Campeche pode ser uma nova variação da cultura da automedicação em animais e uma novidade dentre os carnívoros, para aliviar irritação e coceira causadas por ectoparasitas.

Além disso, o estudo detectou que os quatis do local usam a automedicação há mais de uma década, que se transformou em uma aprendizagem social transmitida por gerações. “A plasticidade comportamental e motivação em explorar novas situações é característica deles”, diz Gasco.

Pesquisas anteriores já haviam descoberto que os quatis sulamericanos costumam esfregar em seus corpos artrópodes, como o piolho-de-cobra, e secreções de plantas que, acreditam os biólogos, servem para repelir mosquitos e carrapatos. “O que estamos investigando agora são as causas da unção com produtos não-naturais”, diz a bióloga.

“Até o momento, supomos que esse comportamento possa ter surgido pela interferência humana, pois eles estão em constante contato com os moradores da ilha, que apresentaram indiretamente os produtos de higiene a eles.”

Mais detalhadamente, Aline diz que a origem do ato esfregar produtos humanos pelo corpo deve ser resultado de uma soma de fatores internos e externos aos animais, que inclui a capacidade exploratória deles, o comportamento de catação, a plasticidade comportamental para viver em ambientes com a presença humana e a possível ausência na ilha de plantas com propriedades analgésicas ou atividade contra ectoparasitas.

“Na verdade, acreditamos que o efeito do uso do sabão tenha se disseminado entre os membros do grupo pela observação curiosa deles, como também pelo contato social durante a alo-catação (mordiscar ou coçar um ao outro)”, conta.

Esse comportamento consiste nos animais realizarem uma limpeza em si próprios e também nos demais membros do grupo. “Mas não é só isso”, explica Aline.

“Os laços sociais são fortalecidos durante esses momentos de interação social. Nesse contexto, o compartilhamento da espuma entre os indivíduos do mesmo grupo contribuiu para a unção espalhar-se e ser aceita nessa população da ilha.”

Intoxicação por produtos de limpeza

O uso de produtos humanos pelo quatis, no entanto, não traz apenas benefícios para eles. Se eles utilizassem apenas sabonetes para espumarem-se, o uso tópico talvez tivesse os mesmos riscos que oferecem aos seres humanos. Quanto aos demais materiais, esses provavelmente causariam intoxicação nos animais.

Além disso, é possível que o uso tópico com frequência de produtos químicos abrasivos irrite a pele dos quatis. “Embora os níveis de toxicidade devam variar entre o contato com a espuma, ingestão e a imersão no líquido, qualquer utilização teria margem de segurança duvidosa”, alerta Gasco.

“O correto seria proteger os animais da exposição a esses produtos.”

Apesar de inusitado, o comportamento dos quatis da ilha do Campeche parece não ser um fato isolado.

Depois que o artigo sobre o trabalho da pesquisadora foi publicado, ela começou a receber relatos de pesquisadores brasileiros sobre diversos outros materiais de origem antrópica que eram esfregados pelos animais em seus corpos, tais como luvas de látex, por exemplo.

Seja como for, Monticelli, orientadora de Aline Gasco, diz que a população de quatis da ilha – que não é nativa de lá, tendo sido introduzida na década de 1950 – oferece uma oportunidade rara para se estudar a cultura da automedicação em animais.

“Quanto aos produtos deixados pelos turistas, antes de serem vistos como problema, é preciso melhorar a gestão dos resíduos orgânicos na ilha e o acabar com hábito dos visitantes de alimentar os quatis”, recomenda.

Ciberia // BBC

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