Quando, em 24 de março, o governo indiano iniciou um estrito isolamento da população e ordenou o fechamento de comércio e serviços não essenciais, o número de casos positivos de coronavírus somava cerca de 500. Com uma população de 1,3 bilhão e cidades densamente povoadas, as autoridades sabiam que o alastramento da doença poderia tomar uma dimensão catastrófica.
Mais de dois meses, 280 mil casos e 8 mil mortes depois, a Índia começou, nesta semana, a aliviar o confinamento, a despeito dos recentes recordes diários de diagnósticos positivos e da escassez de leitos no país. Mas há vários alertas de que os números de casos e mortes estão subnotificados.
Em reportagam publicada nesta sexta-feira, o jornal britânico Financial Times cita fontes de hospitais em Nova Déli que colocam os dados oficiais em dúvida. Segundo o jornal, nas últimas duas semanas, os crematórios e cemitérios estão tendo dificuldades para lidar com o alto número de mortos.
Em entrevista à agência de notícias Press Association, o médico e presidente do Fórum Progressivo de Médicos e Cientistas, Harjit Singh Bhatti, diz que o país está “sentado sobre uma bomba-relógio”. “Se o governo não aumentar os gastos em Saúde, as coisas não vão mudar. Muita gente vai morrer.”
O alívio das medidas de isolamento foi uma resposta do governo a pressões pelo impacto econômico das medidas de isolamento e por uma crise humanitária, com milhões de pessoas sem renda e sem emprego. Passaram a ser comuns na imprensa asiática os casos de trabalhadores que, migrados das cidades pequenas para grandes centros para trabalhar, tentavam fazer o caminho inverso — muitas vezes a pé — após perder o emprego.
Até a última quarta-feira, a Índia tinha 286 mil casos de covid-19, cerca de metade deles diagnosticados nas últimas duas semanas. Desde o último sábado, o país tem registrado quase 10 mil casos diários, em dias consecutivos de recorde. A Índia figura agora ao lado dos países mais assolados pelo vírus, como Estados Unidos e Brasil, e desbancou a Itália no número de casos.
Por outro lado, com a circulação de pessoas fortemente controlada, os indianos conseguiram manter o número de mortes baixo. Também até essa sexta-feira, eram 8.498. A taxa de mortalidade do país é de 2,8%, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 08 de junho. Para fins de comparação, nos Estados Unidos e no Brasil, essa taxa está acima de 5%. No Reino Unido, 14%.
Estima-se que, sem o confinamento, as mortes na Índia poderiam ter chegado a 2 milhões.
A OMS elogia os resultados do país, mas questiona os riscos que um alívio agora pode trazer: “As medidas tomadas na Índia certamente tiveram um impacto em atenuar os casos, mas, à medida que Índia e outros grandes países se abrem e as pessoas começam a se mover, há sempre o risco de a doença voltar a crescer“, apontou o diretor executivo do Programa de Emergências em Saúde da organização, Mike Ryan, em coletiva de imprensa.
Alívio gradual e sem consenso
O fim do confinamento anunciado pelo governo indiano será gradual. Inicialmente, permitiu-se a circulação de ônibus e trens e a abertura de shoppings, restaurantes e templos, com as devidas precauções de distanciamento e higiene. Estes últimos foram alvo de polêmica entre os epidemiologistas.
“Prevenir a formação de focos de contágio é a necessidade do momento. Estamos abrindo os locais religiosos muito cedo, muito rápido. Os deuses podem esperar”, escreveu o professor e epidemiologista Giridhar R Babu, da Fundação de Saúde Pública da Índia, em seu Twitter.
Contudo, sem consenso entre os Estados, os governos regionais iniciaram o alívio em compassos diferentes. Nas duas cidades mais atingidas pelo vírus, as populosas Nova Déli e Mumbai, templos e shoppings seguem proibidos num primeiro momento.
Ambas estão com o sistema de saúde saturado e começaram a recusar pacientes nos últimos dias. Em Tamil Nadu, no sul da Índia, o transporte só foi liberado parcialmente e os restaurantes podem funcionar, mas sem ar condicionado.
Impacto social
O impacto do confinamento na população mais pobre é um dos grandes problemas enfrentados pela Índia agora, o que acabou por pressionar o governo a acelerar o fim das restrições de movimento.
Além de evidenciar as condições precárias em que vários trabalhadores vivem, em alojamentos lotados em que o distanciamento social é praticamente impossível, a pandemia iniciou um processo de êxodo inverso, de volta para a área rural, e afundou parte da população na pobreza. Só em Mumbai, a imprensa local estima que 1 milhão de pessoas deixaram a cidade.
Os primeiros sinais da dimensão do problema foram vistos logo que o isolamento foi anunciado — do dia para noite —, o que levou vários trabalhadores a lotarem as estações de trem na tentativa de voltarem para suas cidades natais.
Com o transporte efetivamente impossibilitado, tornaram-se comuns nas últimas semanas as imagens de milhares de indianos nas rodovias, tentando fazer o caminho a pé, se equilibrando entre malas e crianças. A maior parte deles vem de regiões mais pobres e rurais tentar um emprego sazonal ou informal nos grandes centros.
Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) dão conta de que quase 90% da população indiana trabalha na economia informal. Sem emprego e sem renda para se sustentar e se alimentar nos grandes centros após a determinação do confinamento, muitos deles se viram forçados a furar a regra do “fique em casa” para tentar voltar para suas famílias — vários acabaram presos por isso.
Casos dramáticos no caminho de volta— como o dos 16 trabalhadores que adormeceram nos trilhos do trem e foram atropelados — se tornaram frequentes e chamaram a atenção dos organismos internacionais. Ainda segundo a OIT, cerca de 400 milhões desses trabalhadores estão em risco de “cair em profunda pobreza” durante a crise.
O Banco Mundial criticou a falta de planejamento para suportar os trabalhadores em uma situação de crise.
“Isolamentos, viagens banidas e medidas de distanciamento social em resposta à crise afetaram desproporcionalmente os trabalhadores migrantes, que se encontraram encalhados, incapazes de retornar tanto para seus locais de trabalho quanto para suas comunidades de origem. Sem um acesso adequado à moradia, água e saneamento, saúde ou redes de segurança social para ajudá-los a sobreviver a essas restrições, esses migrantes ficaram em situação ainda mais vulnerável”, apontou a organização em relatório.
Pressionadas, as autoridades indianas começaram a mover esforços para ajudar a população a voltar para casa, relaxando as restrições de movimento, colocando trens para rodar e pontos de parada com suprimentos para quem faz o trajeto a pé.
A Índia também anunciou dois pacotes de estímulo à economia, que incluem medidas de ajuda para empregadores e empregados, no valor de US$ 266 bilhões. Segundo o governo, as medidas equivalem a 10% do Produto Interno Bruto (PIB) do país.
Economia
O economista sênior da Capital Economics Shilan Shah afirma que a Índia acertou em estabelecer um confinamento cedo, mas errou na forma como gerenciou isso. “As evidências até agora mostram que quanto mais cedo, melhor. Mas poderia ter sido melhor manejado”, apontou.
Para Pushan Dutt, professor de economia e políticas sociais da escola de negócios Insead, o isolamento foi iniciado em um momento em que a economia indiana tinha várias fragilidades, como altos níveis de endividamento e uma reforma tributária mal feita. Esse fator, atrelado à má gestão do confinamento, tornou uma reabertura necessária agora, na opinião dele.
“A economia, fechada sem aviso prévio, sofreu um enorme golpe. O lockdown foi precariamente implementado, com um número maciço de migrantes retidos nas cidades sem meios de subsistência”, aponta, completando: “As cadeias de suprimentos se provaram bem menos robustas e a segurança alimentar se tornou um problema. Então, a Índia foi forçada a aliviar o confinamento mesmo quando os casos estão subindo”, frisou.
Para Shah, da Capital Economics, as consequências do isolamento para a economia e para os trabalhadores já foram tão devastadoras que mantê-lo por mais tempo pode trazer mais efeitos negativos do que positivos.
Segundo estimativas do Banco Mundial dessa semana, a expectativa é de que a economia indiana tenha um recuo de 3,2% este ano. No primeiro trimestre, a queda na atividade foi de 3,1%.
“O estrago foi muito grande para que (o lockdown) seja sustentável. As pessoas não estão ganhando nenhuma renda. Há três meses, quando a pandemia começou, o isolamento fez sentido, na tentativa de que o surto fosse controlado, mas não há evidências de que isso tenha funcionado”, aponta, ponderando que, se os casos voltarem a ter um pico de forma a sobrecarregar o sistema de saúde, o governo não terá escolha a não ser fechar tudo novamente.
// BBC