Nos últimos meses, Boldizsár Nagy teve que lidar com situações que nunca imaginara. Por muito tempo, ele foi um jornalista e editor de livros infantis desconhecido, “ninguém especial”, em suas próprias palavras.
Quando, em 2020, ele e alguns colegas publicaram um livro de conto de fadas intitulado Meseorszag mindenkie (País das Maravilhas para todos), Nagy não esperava mais do que algumas críticas nos jornais. Mas se enganara: Dóra Dúró, uma política de ultradireita, destruiu o livro ao vivo na TV, por incluir personagens gays, lésbicas, trans e ciganos. O chefe do gabinete do governo, Gergely Gulyás, o classificou como “propaganda homossexual”.
Até hoje, Nagy, que é gay, recebe diariamente ameaças de morte nas redes sociais. Ele tem medo de sair de casa, especialmente à noite, e não se sente mais seguro. “Esta é a minha nova realidade”, comenta à DW.
Com um gesto tímido, aponta para seu anel: ele e seu parceiro estão há cinco anos numa união civil registrada e querem adotar uma criança, mas as autoridades húngaras continuam colocando obstáculos em seu caminho. Por isso, decidiram deixar o país, diz Nagy, sem revelar para onde pretendem ir.
“Shakespeare censurado?”
O governo da Hungria, do nacionalista de direita Viktor Orbán,vem aumentando a pressão contra a comunidade LGBTQ já há algum tempo. Em maio de 2020, legisladores aprovaram uma lei proibindo pessoas trans de mudarem de gênero e, em dezembro, promulgaram uma emenda constitucional estipulando que “mãe é uma mulher e pai é um homem”. Uma legislação recente também torna impossível, na prática, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo.
Já em junho, o parlamento aprovou uma suposta lei de proteção à criança que proíbe a “representação e promoção” da homossexualidade e do sexo para menores em geral. Diante da indignação e críticas generalizadas, na quarta-feira (20/07) Orbán anunciou que realizará um referendo sobre a lei, ao mesmo tempo incitando a população a apoiá-la.
A União Europeia (UE) se opôs à lei, que também é controversa na própria Hungria. Profissionais do setor cultural temem sobretudo medidas de censura arbitrária. “Eles agora vão fechar exposições de arte e bibliotecas? Vão proibir Shakespeare nas escolas porque há personagens gays nas suas peças?”, pergunta Kriszta Szekely, diretora do Teatro József Katona, de Budapeste.
A lei machuca pessoalmente a artista, que é abertamente lésbica,. “É como se eles estivessem dizendo: ‘Fica escondida, passa despercebida, e fica felizes que te deixamos viver assim’.” Ela teme que no futuro os artistas se autocensurem ou que possam ser multados se não obedecerem à nova lei.
No início de julho, a segunda maior cadeia de livrarias da Hungria, Lira Konyv, foi multada em 700 euros (R$ 4,3 mil) porque, de acordo com as autoridades, os clientes não foram devidamente advertidos sobre um livro que mostra uma família com pais do mesmo sexo. Segundo a agência governamental, a obra deveria vir com um aviso de que seu conteúdo “se desvia da norma”. Para evitar multas no futuro, a Lira Konyv, que é contra a nova lei, colocou um alerta nesse sentido na entrada de todas as suas filiais.
Isenções de responsabilidade e avisos aos clientes
Por sua vez Andras Urogdi, fundador e diretor executivo da Pagony, a maior rede de livrarias infantis da Hungria, se recusa a colocar avisos aos clientes em suas 11 lojas: “É claro que não vamos começar agora a censurar livros no mercado húngaro.” Ele aponta para o texto vago da lei, explicando que, na prática, isso a torna quase impossível sua implementação.
Mas essa não é a única razão por que a lei é rejeitada por quase todo o mercado de livros húngaro: “O termo ‘censura’ tem uma conotação muito ruim na Hungria, quando se pensa nos 40 anos de ditadura soviética. Qualquer coisa que se pareça remotamente com censura faz soar o alarme entre os livreiros húngaros.”
Urogdi lembra o que aconteceu quando Meseorszag mindenkie estava exposto em suas prateleiras: assédio na forma de e-mails e telefonemas, cartazes “nojentos” colados nas paredes de suas lojas.
Na época, os inimigos das comunidades LGBTQ – e de livros que sequer as mencionem – não tinham base legal para perseguir livrarias e editoras. “Mas agora, por causa dessa lei incoerente e incompreensível, eles podem ir de livraria em livraria e denunciá-las às autoridades. E isso é muito, muito preocupante.”
Solidariedade mundial
Quem conversa com o pessoal de cultura húngaro percebe, acima de tudo, resignação. Muitos, principalmente LGBTQs, estão até pensando em deixar o país. “Com essa lei, tudo pode acontecer. Temos medo de perder tudo”, diz Nagy.
Tibor Stefan-Racz, um conhecido autor gay que frequentemente aborda questões LGBTQ em seus livros para jovens adultos, revelou por e-mail à DW que planeja “deixar o país se o Fidesz [partido de Orbán] vencer as eleições novamente em 2022”.
Ao mesmo tempo, as comunidades LGBTQ do país podem contar com a solidariedade internacional. A Comissão Europeia condenou veementemente a lei e iniciou uma ação judicial contra a Hungria. “Celebridades, atores, artistas e políticos estão agora defendendo a nossa comunidade mais ativamente do que nunca”, afirma Szekely.
Segundo Nagy, a lei “une muita gente que se opõe a ela: agora estamos finalmente visíveis”. Ele espera que muitos tomem as ruas na Parada do Orgulho Gay de Budapeste, em 24 de julho. Enquanto isso, o governo húngaro permanece indiferente à crescente oposição à nova lei, rechaçando toda crítica como “campanha internacional de ódio contra a Hungria”.
Ciberia // DW