A RFI ouviu especialistas para entender as reações que levam a esse comportamento e descobriu que elas fazem parte de um contexto de medo e incerteza.
Em meio à pandemia de coronavírus, algumas cenas inusitadas têm chamado a atenção, como a corrida aos supermercados para estoque de produtos de primeira necessidade. Ainda que governos e atacadistas reiterem que não haverá desabastecimento, mesmo que algumas prateleiras estejam vazias temporariamente, não são raros os casos extremos que ganham destaque nas redes sociais, onde circulam vídeos de disputas acirradas por rolos de papel higiênico.
Na França, em resposta à epidemia do Covid-19, o papel higiênico virou artigo de luxo em alguns supermercados. O mesmo já foi constatado em outros países, com Reino Unido e Canadá, onde o pânico do consumidor se instalou. Após uma rápida pesquisa na internet, não é difícil visualizar cenas dantescas em que clientes disputam mercadorias na base da violência física.
O vídeo abaixo, filmado na Austrália, mostra consumidoras brigando pelos últimos rolos de papel higiênico disponíveis. O gerente do estabelecimento é obrigado a intervir para acalmar as clientes.
A postagem, feita no dia 8 de março, alcançou, até o momento, 77k de visualizações, foi compartilhada mais de 400 vezes e teve quase 500 likes. Assim que as imagens foram divulgadas no Twitter, muitas pessoas comentaram a cena.
“É uma prova de que somos verdadeiros escravos da sociedade de consumo”, escreveu uma internauta que se identifica como Pretinha Maria. “Triste de ver que no momento em que as pessoas deveriam se unir elas se dividem”, escreveu Patrick Charbonneau.
A psicanalista francesa Sonja Saurin tem uma interpretação para esse apego dos consumidores em momento de crise. “O papel higiênico está relacionado à limpeza. Enquanto você está evacuando, o seu corpo rejeita o que não serve mais. Então, há uma associação metafórica desse papel higiênico, feito para limpar, e a vontade de evitar contaminação, além de evacuar os medos”, explica.
“Nesse momento, vemos homens que sempre tiveram barba raspando, pois tudo o que pode ser sujo lembra contaminação. O que podemos dizer também, de um ponto de vista psicanalítico, é que quando há pânico as pessoas se fixam sobre certos objetos”, acrescenta.
Internet lotada de imagens de carrinhos cheios e filas
A internet está inundada com imagens capturadas em todo o mundo de carrinhos cheios e longas filas nos supermercados, onde consumidores compram o suficiente para se manter por meses. Segundo especialistas, assistir à essas imagens, além das notícias falsas e dos boatos que circulam sobre o coronavírus, contribui para o pânico generalizado.
Para evitar isso, uma das maiores redes de varejo da França lançou um comunicado nesta quarta-feira (18) para todos os países onde têm filiais: Brasil, Argentina, Romênia, Espanha, Itália e Polônia. Para o Carrefour, divulgar informações sobre reabastecimento de produtos essenciais nas lojas é um caso de utilidade pública.
“Nossas prateleiras e os depósitos do comércio online são repostos várias vezes ao dia para responder a alta demanda. Pode haver alguma ruptura temporária de determinado item, mas temos estoques suficientes para suprir as lojas pelos próximos dias e semanas”, tranquilizou Alexandre Bompard, diretor-geral do grupo francês.
Na capital francesa, os depósitos de mercadorias estão autorizados a trabalhar aos domingos para garantir as entregas. Os supermercados continuam abertos em horário normal, o que não impede algumas pessoas de fazerem fila, mesmo antes da abertura das portas. Ao mesmo tempo, as entregas em domicílio estão demorando um pouco mais do que o habitual, levando consumidores a se preocuparem inutilmente, garante o grupo Carrefour.
“A alta procura pelas compras pela internet tem provocado atraso nas entregas, mas as equipes responsáveis estão sendo reforçadas. Entretanto, pedimos que a prioridade desse serviço seja para os clientes mais vulneráveis, em dificuldade de locomoção e os profissionais da saúde”, diz o comunicado.
Nas próximas semanas, a rede de supermercados vai criar um atendimento especial por telefone em Paris para quem não tem acesso à internet.
Necessidade de controle
Pesquisa realizada com os professores de marketing Charlene Chen e Leonard Lee aponta que “os consumidores compensam a percepção da perda de controle pela compra de produtos básicos, essenciais para resolver um problema ou concluir uma tarefa”. Em resumo, é isso que acontece quando vemos pessoas correrem para comprar enlatados ou produtos de limpeza em proporções irracionais.
“A insegurança humana é inerente, mas torna-se sempre maior em momentos de tensão e de guerra”, explica o médico e psicanalista carioca Paulo Próspero. “Isso porque nascemos imaturos e carregamos essa imaturidade emocional para o resto da vida. Mas nos momentos de pânico é ainda mais difícil encontrar um equilíbrio”, disse à RFI.
“Em ‘Reflexões sobre tempos de guerra e paz’, de 1915, Freud já dizia que o homem não é tão bom quanto parece em temos de paz e nem tão mal em momentos de guerra. Agora vivemos uma guerra bacteriológica, pois o inimigo é invisível. Isso aumenta os fatores de desequilíbrios e as pessoas encontram refúgio no hiperconsumismo”, analisa. “Mas, agora, elas não compram grifes, mas sim o que é oferecido no supermercado”, completa.
Outra análise possível é que, em tempos de crise, as pessoas querem estar em ação e não apenas no debate de ideias. Assim, para acalmar a ansiedade e ajudá-las a recuperar o senso de controle, muitas correm às lojas que ainda estão funcionando.
“Medo de sentir falta é algo que existe no humano desde bebê. Para crescer, as crianças precisam de atenção, de carinho e se elas sentem falta disso, vem o pânico, a crise e o medo. Comprar, de fato, é uma forma de combater a angústia dessa falta”, observa a psicanalista Sonja Saurin. “E lembrem-se que nós, seres humanos, começamos a nossa vida já em confinamento, na barriga da nossa mãe”, alerta.
Papel dos governos
Em situações como essa, cabe aos governos agir e mostrar que há um plano em ação e que medidas estão sendo tomadas para resolver a situação. Um internauta aproveitou a cena das disputas no supermercado para chamar a atenção das autoridades sobre a importância da transparência em momentos de crise.
“Para dissipar o sentimento de pânico, os governos devem prestar atenção à forma como comunicam suas medidas, quando e com que frequência. A situação de qualquer pandemia é tão volátil que as políticas governamentais talvez precisem evoluir rapidamente para responder a ela. Uma mensagem forte faz a diferença entre um estado que entende a situação e sabe para onde está indo, e outro que não sabe como lidar com a crise”, diz um dos comentários lidos no Twitter.
O caso de Cingapura, onde nenhuma morte relacionada ao vírus foi observada até agora, apesar de mais de uma centena de casos identificados, parece um bom exemplo de contenção da infecção e de manutenção da confiança dos cidadãos.
Lá, ao primeiro sinal de pânico, as pessoas também estavam comprando grandes quantidades de arroz e macarrão instantâneo. Porém, o governo fez declarações públicas regularmente e foi bastante franco sobre os perigos do Covid-19. o primeiro-ministro Lee Hsien Loong veio a público pedir calma e tranquilizar os moradores.
“Temos suprimentos suficientes, não há necessidade de fazer estoques“, disse ele. Uma semana depois, as coisas se acalmaram e a população de Cingapura voltou a comprar itens em quantidades normais novamente.
Já no Japão e no Irã, os governos foram criticados por sua falta de transparência. Nesses países há preocupação de que as autoridades possam estar ocultando deliberadamente informações sobre o vírus.
Além de causar transtornos desnecessários, a corrida desenfreada aos supermercados leva a uma escassez provisória de certas mercadorias, como é o caso do álcool gel, tendo impacto nos preços por causa da lei de oferta e procura.
Alternativa à moda antiga
Diante da falta de papel higiênico, os australianos viram crescer as vendas de um objeto que era comum no tempo de nossos avós. Segundo reportagem do jornal inglês Daily Mirror, o país registrou um forte aumento do retorno do bidê.
Para fazer face à situação de crise, muitas pessoas estão se interessando novamente por essa pequena unidade sanitária, fixa ou móvel, que pode ser usada para lavar partes íntimas usando um jato de água. O fato é evidenciado pelas pesquisas no motor de buscas Google, que mostram um claro aumento no termo “bidê” nas últimas semanas, como mostra o post abaixo.
Para evitar que o medo se espalhe nessa hora, especialistas ouvidos pela RFI sugerem um retorno a hábitos mais básicos e apego à realidade. “Lacan dizia ‘o real é quando a gente se debate’”, lembra Saurin. “Para combater o efeito do pânico, tem que escutar as autoridades que dizem que não vai faltar comida. Somos nós que estamos criando esse pânico. Um pouco como as crianças que têm medo da noite”, compara.
“A classe alta, mais consumista, é a que está mais preocupada agora e compra grifes alimentares”, compara Paulo Próspero. Mas isso é falso, pois não há como estocar por meses, então é puro desiquilíbrio emocional. É como se dar um presente, mas um presente insano”, conclui.
// RFI