Com quase 90% dos votos contabilizados, resultados parciais da eleição realizada neste domingo na Bolívia indicam que o atual presidente Evo Morales não teve votos suficientes para garantir já sua vitória, caminhando para disputar com o ex-presidente Carlos Mesa o segundo turno em dezembro – rodada que não acontece no país há 37 anos.
Evo Morales, que está no poder há quase 14 anos e busca o quarto mandato consecutivo, aparece com 45,28% dos votos, contra 38,6% de Carlos Mesa, jornalista e historiador de 66 anos que já comandou o país entre 2003 e 2005.
O sistema do Órgão Eleitoral Plurinacional da Bolívia mostra cerca de 89% das urnas computadas, mas espera-se que algumas tendências ainda possam mudar, já que urnas de áreas rurais, onde Morales é muito popular, ainda precisam ser contabilizadas.
Na Bolívia, para ser eleito presidente são necessários 40% dos votos e uma diferença de 10% para o segundo colocado, ou mais de 50% da votação.
Diferente de pleitos anteriores, esta corrida eleitoral está mais incerta. Além da questão jurídica, podem influenciar a votação, segundo analistas, a estabilidade econômica registrada na era Evo Morales e também os incêndios recentes na fronteira com o Brasil.
A BBC News Brasil entrevistou autoridades do governo boliviano e da oposição, além de analistas políticos, sobre a disputa eleitoral, que tem como três principais candidatos Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS); o ex-presidente, escritor e jornalista Carlos Mesa, da chapa Comunidade Cidadã (Comunidad Ciudadana); e o senador Óscar Ortiz, da Aliança Bolívia Diz Não (Alianza Bolívia Dice No).
Principal opositor de Evo nesta eleição, Mesa questiona o processo que permitiu a candidatura do presidente. Durante a campanha, disse que os bolivianos votarão entre “o caminho autoritário” e a “democracia”.
Numa visita recente a Buenos Aires, Mesa afirmou ser “preciso terminar com a concentração de poder e com a teoria de que a Bolívia não pode viver sem Evo”. Para o opositor, Morales “já fez o que tinha de ser feito”, como valorizar o conceito de ser indígena no país, ter administrado “razoavelmente” a economia e “não ter repetido o erro econômico da Venezuela”.
No entanto, disse temer pelo seu legado e a queda na arrecadação, depois que Brasil e Argentina passaram a comprar menos gás boliviano.
Morales, por sua vez, afirmou mais de uma vez que não houve manobra jurídica ou qualquer ilegalidade. O presidente defende que é candidato “porque o povo quer” que ele continue na Presidência, por saber que sua vida “melhorou” em sua gestão.
‘Direitos humanos’
Morales assumiu o poder em janeiro de 2006 e é o presidente boliviano que está no cargo há mais tempo na história do país.
Uma mudança constitucional aprovada em 2009 criou a possibilidade de reeleição presidencial para dois mandatos consecutivos de cinco anos cada, o que permitiu que ele concorresse em 2010 e 2014.
Em 2016, os partidários de Morales convocaram um referendo para modificar a Constituição novamente e permitir que concorresse a um quarto mandato. Mas a proposta foi rejeitada pela maioria dos eleitores por uma margem estreita: 51,3% votaram pelo “não”.
Apesar disso, o Tribunal Constitucional determinou em novembro de 2017 que o limite de dois mandatos era “uma violação dos direitos humanos” e autorizou a nova candidatura.
A decisão gerou acusações da oposição de que o governo estaria sendo favorecido pelo tribunal. Também divide analistas políticos e juristas locais, em um debate que permanece relevante na reta final desta corrida.
“Foi uma postulação inconstitucional. O governo afirmou que o Acordo de Direitos Humanos de São José da Costa Rica (também conhecido como Convenção Americana sobre Direitos Humanos) está acima da Constituição nacional. Mas a verdade é que o resultado do referendo popular não foi respeitado”, disse o economista Javier Gómez, do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Trabalhista e Agrário (Cedla, na sigla em espanhol).
Para o cientista político Fernando Mayorga, professor da Universidade Pública de Cochabamba, os trâmites jurídicos foram respeitados. “Está escrito na Constituição que os acordos internacionais são superiores à própria Carta magna. E o Tribunal Constitucional (a partir do acordo de São José da Costa Rica) permitiu a eleição não só para presidente, mas para todos os cargos”, disse Mayorga, autor de livros sobre a política de Morales.
Eleição mais apertada
A polêmica em torno da nova candidatura de Morales pode ter contribuído para deixar mais acirrada a disputa. “Evo está à frente nas pesquisas, mas desta vez não está claro que vencerá no primeiro turno. Ele é um político que gera amor e ódio e várias contradições. Por exemplo, ao mesmo tempo em que cerca de 60% aprovam as obras de infraestrutura que realizou no país, 60% também rejeitam que seja candidato novamente”, disse o analista José Luis Galvez, do Instituto Ciesmori, de pesquisas de opinião pública.
Uma pequena empresária de La Paz, que falou sob a condição do anonimato, criticou a postura de Morales após o referendo. “Evo fez muitas coisas boas, mas mentiu ao dizer que respeitaria o resultado do 21-F (referendo de fevereiro de 2016) e que não seria candidato se o ‘não’ vencesse”, disse ela.
“O ‘não’ venceu, e ele está aí agora, candidato de novo. Nosso país precisa de alternância, para o bem da democracia. Vou votar no Mesa, como muita gente, principalmente para tentar fazer com que Evo não continue.”
Para o analista Roberto Lasema, do Centro de Estudos da Realidade Econômica e Social (Ceres), Morales “quebrou a promessa de que não buscaria mais um mandato”.
‘O fator econômico’
O ministro da Economia, Luis Arce, diz em entrevista por telefone à BBC News Brasil ser natural que ocorra um desgaste da gestão de Morales, por causa do longo período na Presidência.
Ele observa, porém, que novos governantes da América do Sul, como Jair Bolsonaro, no Brasil, Mauricio Macri, na Argentina, e Sebastián Piñera, no Chile, “perderam popularidade rapidamente” — em alguns casos de forma dramática, como no de Macri.
Segundo o ministro, a economia boliviana deverá crescer novamente neste ano. Ele ressalta que a estabilidade econômica é um fator decisivo no voto dos bolivianos.
“Estamos atentos aos efeitos dos problemas mundiais, como a guerra comercial entre China e Estados Unidos, que se somaram aos problemas de Argentina e Brasil, os quais passaram a demandar menos gás boliviano. Apesar disso, nossa economia continua sólida e crescendo”, disse Arce, citando indicadores do governo como a queda na pobreza (de 38% para 15% nos anos Morales), entre outros índices registrados nos mais de 13 anos de gestão.
Arce afirmou ainda que, se a oposição for eleita, a Bolívia pode ter problemas econômicos semelhantes aos de seus vizinhos.
“A oposição representa um risco, assim como Macri, na Argentina, Bolsonaro, no Brasil, e Lenín Moreno, no Equador. Se eleita, a oposição vai fazer privatizações, eliminar os benefícios que distribuímos e gerar inflação. Por isso, achamos que Evo vai ganhar no primeiro turno. Os indecisos vão optar pela estabilidade econômica contra o neoliberalismo.”
Segundo o ministro, Morales deve continuar para “concluir e consolidar” o que vem fazendo.
Para Mayorga, a campanha do governo, cujo lema é “Futuro Seguro”, “não é uma campanha do medo”. “O governo Evo de fato representa a estabilidade econômica. E Mesa já foi presidente e renunciou sem tomar medidas importantes, como a nacionalização dos hidrocarbonetos realizada por Evo”, disse Mayorga.
Mesa era vice do então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, que saiu do país em meio a protestos, e ficou menos de dois anos no cargo antes de renunciar também em meio a manifestações.
Incêndios e ‘voto de castigo’
Crítico ao atual governo, Javier Gómez, do Cedla, afirma que, até poucos dias antes dos incêndios registrados neste ano na Floresta Amazônica boliviana perto do Brasil, a tendência era de vitória de Evo Morales no primeiro turno.
Na sua visão, os incêndios acabaram sendo o estopim para protestos “pelo meio ambiente, pela democracia e contra uma nova eleição de Evo” em vários pontos do país.
“A preocupação com o meio ambiente afetou o voto principalmente dos mais jovens, e os incêndios acabaram canalizando a insatisfação popular com as falências institucionais do governo para resolver os problemas do país. O voto de ‘castigo em Evo’ cresceu depois dos incêndios”, diz Gómez.
Para o economista, os incêndios ocorreram por causa das mudanças climáticas, mas também por conta da medida do governo, de julho, que ampliou a área permitida para queimadas “controladas” para aumentar o cultivo de grãos.
“Muita gente colocou fogo sem conhecer a forma apropriada de fazer isso. Foram queimados milhões de hectares, entre bosques e pastos, principalmente na fronteira com o Brasil. E isto vai afetar o voto de muitos bolivianos”, diz Gómez.
// BBC