No auge do surto do vírus zika, no Brasil, entre 2015 e 2016, notou-se que apesar da concentração maior de casos na região Centro-Oeste do país, foi no Nordeste que houve maior incidência de microcefalia em decorrência do patógeno.
Desde então, diversos estudos já ligaram fatores ambientais ao problema – incluindo a vulnerabilidade maior de bebês gerados por mães em estado de subnutrição, nesta que é a região mais pobre do país.
Uma pesquisa publicada nesta quinta-feira (12/03) pelo periódico PLOS Neglected Tropical Diseases mostra, contudo, que precárias condições de saneamento básico são responsáveis por potencializar a gravidade das malformações. No caso, a presença de uma bactéria comum em caminhões-pipa e reservatórios de água mal-higienizados.
“Isto explica o cenário: no Brasil, cerca de 75% dos casos dessa síndrome congênita foram registrados no Nordeste”, diz à DW Brasil a biomédica Patricia Pestana Garcez, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e uma das autoras da pesquisa. Além da UFRJ, participaram do trabalho cientistas do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
“Na época da epidemia, muitos médicos e cientistas brasileiros se perguntavam por que o Nordeste brasileiro seria o epicentro mundial dos casos de microcefalia associados ao vírus zika. Nossa hipótese estava na existência de um cofator ambiental evitável, capaz de tornar a infecção do vírus zika mais danosa ao sistema nervoso”, comenta à DW Brasil o neurocientista Stevens Rehen, pesquisador do Idor e da UFRJ e um dos autores da pesquisa. “A hipótese surgiu de conversas com Renato Molica [biólogo, pesquisador da UFRPE], estudioso dos efeitos nocivos de cianobactérias sobre a saúde humana.”
De acordo com os cientistas, cianobactérias produzem uma toxina, a saxitoxina, substância esta altamente danosa ao sistema nervoso tanto de humanos como de outros animais. Entre 2012 e 2017, compreendendo portanto o período do surto de zika no Brasil, a região Nordeste enfrentou uma histórica estiagem. No semiárido, recorreu-se de forma mais frequente ao abastecimento realizado de forma precária, com caminhões-pipa e reservatórios mal-higienizados. “Falta saneamento básico”, avalia Garcez.
Dados obtidos pelos pesquisadores a partir do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (SisAgua) apontaram que, entre 2014 e 2018, cerca de 30% da água consumida no Nordeste continha mais de 20 mil cianobactérias por mililitro. Como consequência disso, metade dos reservatórios de água da região tinha alta incidência da saxitoxina.
“A partir da constatação desta correlação, fomos testar em laboratório”, conta Garcez. Então, os cientistas realizaram dois tipos de experimentos: com organoides cerebrais humanos e com camundongos.
Os organoides, desenvolvidos em laboratório a partir de células de doadores voluntários, foram expostos à saxitoxina e ao vírus zika, tanto separada quanto simultaneamente. “Quando foram colocados zika e a toxina, houve um aumento de morte celular nesse organoide, indicando que a toxina estava exacerbando os efeitos negativos do vírus”, explica Garcez.
Já os camundongos ingeriram água contaminada com saxotoxina. “E submetemos os animais à infecção do vírus zika”, relata a pesquisadora. “Monitoramos os efeitos sobre o cérebro embrionário quando a fêmea grávida infectada ingeriu a água contaminada. E houve mais morte celular, corroborando o estudo com os organoides.”
Saneamento básico e fatores ambientais
Rehen acredita que o estudo deve propor uma rediscussão na maneira como o abastecimento de água é realizado. “Existe uma carência histórica de saneamento básico em todo o Brasil, principalmente no Nordeste. De todo modo, o que estamos propondo é rediscutir as concentrações de toxinas que podem ser consideradas seguras na água, principalmente diante de epidemias virais e outros problemas de saúde”, comenta.
“Não podemos descartar que a exposição crônica a substâncias tóxicas – ou aquelas cujo efeito sobre o corpo humano é pouco compreendido – pode tornar populações brasileiras, principalmente as mais carentes, vulneráveis a todo tipo de doença”, ressalta o neurocientista. “A baixa qualidade da água consumida é um fator extremamente danoso, acarretando problemas de saúde e maior vulnerabilidade a várias doenças.”
“[É preciso promover a] revisão das concentrações de toxinas consideradas seguras nos reservatórios, [melhorar] investimento em saneamento básico, [realizar] monitoramento da qualidade das águas e vigilância sanitária”, aponta.
Médico infectologista do Instituto Emílio Ribas, em São Paulo, Jean Gorinchteyn afirma à DW Brasil que todos os fatores ambientais precisam ser levados em conta no combate e na prevenção a doenças do tipo.
“Acúmulo de lixo e água parada, tudo isso favorece a proliferação do aedes aegypti, o mosquito que é o vetor de transmissão”, enfatiza. “Por outro lado, temos ainda questões relacionadas à desnutrição materna, que acabam promovendo impacto em alterações na formação do embrião. Uma mulher desnutrida já tem a maior chance de malformações [no feto]. O impacto do vírus zika acaba sendo mais intenso.”
Gorinchteyn ressalta que pesquisas como a publicada nesta quinta são essenciais para que, cada vez mais, causas e efeitos sejam compreendidos no caso do vírus zika. “É muito importante que estudos se consagrem para que consigamos entender essas malformações”, pontua ele.