A recuperação do impacto brutal da pandemia de coronavírus leva a inflação a subir na maioria dos países do mundo, mas a conjuntura internacional não explica o nível chegar a dois dígitos no Brasil. O acumulado no período de 12 meses atingiu 10,25%, o valor mais alto em cinco anos.
Projeções da OCDE apontam que o país poderá finalizar o ano com um dos índices mais elevados (7,2%) entre as maiores economias, atrás apenas de Argentina e Turquia. A média nos países do G20 deve ser de 3,7%.
Sim, o dólar alto, o aumento dos preços da energia e a penúria de matérias-primas no mundo, resultado da explosão da demanda, puxam os preços para cima. No entanto, as incertezas domésticas fazem com que esses fatores tenham maior peso no Brasil e produzam choques de preços.
“Não se trata de excesso de demanda, a forma tradicional de se diagnosticar o problema da inflação. A atividade econômica está morna”, explica o consultor econômico Raul Velloso, doutor pela Universidade de Yale. “A taxa de câmbio é o principal elemento de choque de preços, e ela decorre de vários fatores que nem sempre ocorrem em outros países.”
A instabilidade política crônica e a falta de clareza fiscal continuam afastando os investidores estrangeiros do país –em seu pior nível em 20 anos, conforme dados recentes da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento). Com dólar saindo mais do que entrando na economia brasileira, o câmbio permanece elevado, com impacto nos preços. O real foi uma das moedas que mais se desvalorizou durante a pandemia.
“Cada país pode ter efeitos próprios de realimentação da inflação pelas expectativas. O governo tinha de evitar a fuga de capitais. Tinha de se comportar melhor, combater melhor a pandemia. São fatores que não são necessariamente econômicos”, destaca Velloso. “Se o governo tem um diagnóstico errado ou frágil do que é o problema e continua agindo sem querer mudar posicionamentos que trazem mais pessimismo, aí foge capital, o dólar sobe, as pessoas esperam por mais inflação. Hoje, está todo mundo apavorado aqui.”
Escolhas políticas
O economista da UFRGS Marcelo Milan ressalta ainda que determinadas escolhas políticas e econômicas, como o agronegócio focado na exportação, também levam o país, um dos maiores produtores de alimentos do mundo, a enfrentar a disparada dos preços da cesta básica.
“Como se tem uma migração das culturas de abastecimento interno para culturas de exportação, como a soja, diminuiu-se a área plantada para gêneros de abastecimento interno. Quando a gente vê a o cafezinho caro no Brasil, é um sinal importante de que as coisas estão indo para um caminho equivocado e perigoso”, sublinha o economista.
“Outro componente importante é a decisão da política de preços da Petrobras, de atrelar o preço do petróleo aos preços do barril lá fora, apesar da alta taxa de câmbio atualmente.
O governo privilegia os poucos acionistas e abre mão de utilizar a empresa mais estrategicamente para conter essa pressão de custos, que são repassados nos preços da gasolina, do diesel. É uma decisão política de fazer com que toda a volatilidade lá fora seja absorvida pelos preços no Brasil”, avalia.
Perda do controle
Os dois economistas veem com preocupação o recurso ao aumento da taxa de juros para conter a inflação, num quadro de economia desacelerada como o atual. O remédio poderia atrasar ainda mais a recuperação econômica e levar o país a uma bola de neve de problemas: crédito mais caro, preços ainda mais altos, menos investimentos e menor geração de empregos.
Entretanto, o risco de descontrole da inflação, como nos anos 1980, parece afastado. “Eu acho que não chega a esse ponto. Ela vai ficar perturbando a gente, mas eu não creio que isso vá virar um processo endêmico como nós tínhamos, porque muitos desses efeitos atuais vão e vêm”, afirma Velloso. “Tem uma coisa importante: nós não temos mais o pecado original, ter dívida pública emitida no exterior, em dólar. Pelo contrário, a gente tem reservas de 300 a 400 bilhões de dólares.”
Outro fator determinante, destaca Milan, é que os reajustes dos salários não acompanharão a inflação. O poder de compra das famílias sai prejudicado, mas não haverá pressão salarial acentuando o quadro inflacionário e desencadeando uma situação fora de controle.
“A reforma trabalhista reduziu o poder de barganha dos trabalhadores, o papel e o poder dos sindicatos, de modo que o mecanismo de repasse dos preços para os salários está contido”, salienta o professor da UFRGS. “Mas se os salários não conseguem mais compensar a inflação e a corrosão do poder de compra, isso vai se refletir naqueles quadros trágicos que temos visto, de pessoas comendo carcaças, ossos. A população mais pobre não tem mais como comprar gás de cozinha”, ressalta.
As previsões de crescimento do PIB em 2022 estão modestos: os cenários mais otimistas não esperam mais do que 2,5%, um patamar insuficiente para levantar um país emergente como o Brasil.
// RFI