Ford: por que Argentina reteve a montadora, mas enfrenta saída de empresas estrangeiras como Brasil

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Ford

A decisão da montadora Ford de ampliar suas operações na Argentina — e fechar todas as fábricas no Brasil após mais de 100 anos no país — não necessariamente reflete uma nova tendência.

Os dois países, aliás, enfrentam problemas semelhantes que diminuem sua atratividade aos investimentos estrangeiros.

A Argentina tem assistido à saída de diversas multinacionais de seu território: o grupo chileno de varejo Falabella, a rede de supermercados Walmart, as companhias aéreas Latam, Qatar, Emirates, Norwegian e Air New Zealand.

As francesas Pierre Fabre, farmacêutica, e Saint-Gobain, que produzia parabrisas no país, a americana Axalta e a alemã Basf, que se dedicavam à área de revestimento automotivo, também anunciaram que deixariam a Argentina.

No Brasil, além da Ford, a farmacêutica Roche divulgou em 2019 que encerraria suas operações no país até 2024. No fim do ano passado, a Mercedes-Benz informou que sairia do país, assim como a Sony, que se desfez da fábrica na Zona Franca de Manaus, onde estava há quase 50 anos.

Terceiro ano de crise

Ambos os países veem hoje suas respectivas economias bastante fragilizadas, e não apenas pelo impacto da pandemia de covid-19, que fez o mundo mergulhar em uma recessão no início do ano passado.

A situação na Argentina começou a se deteriorar em 2017, quando o Brasil ensaiava uma recuperação errática da recessão que se estendeu entre 2014 e 2016.

Desde então, os argentinos têm convivido com desemprego elevado, inflação alta, aumento da pobreza e desequilíbrio das contas públicas. Em 2018, o país assistiu à fuga de dólares e mergulhou em uma crise cambial, o que provocou uma desvalorização recorde no peso — que o governo tenta como pode segurar com suas parcas reservas internacionais.

A economia argentina é bastante suscetível aos movimentos da moeda americana, mais do que a brasileira. Com uma dívida externa significativa e um nível de reservas em dólar pequeno (hoje perto de US$ 40 bilhões, contra US$ 355 bilhões no Brasil), o país não consegue reagir a contento quando há uma saída massiva de capital estrangeiro.

Desde que assumiu, Alberto Fernández — um político visto como da esquerda moderada dentro do peronismo — instituiu uma série de mecanismos de controle cambial para tentar brecar a saída de dólares. Limitou a compra da moeda americana entre os argentinos, colocou restrições às importações e instituiu uma taxa de 35% sobre compras feitas no cartão de crédito em sites estrangeiros (como e-commerce e serviços de streaming).

Controles estritos de capital em geral não são boas notícias para os investidores estrangeiros”, diz Nikhil Sanghani, economista para América Latina da consultoria Capital Economics. “Pode significar maior dificuldade para repatriar lucros”, exemplifica.

O diretor da EPyCA Consultores, Martín Kalos, acrescenta que os limites para movimentação de dólares até o momento na Argentina se restringem às pessoas físicas, não chegaram às empresas. Mas recorda que, em um passado não tão distante, o antecessor de Fernández, Mauricio Macri, segurou as remessas de lucros de empresas estrangeiras para o exterior.

“Não está na norma hoje, mas esteve um ano atrás. Acaba sendo um risco para as empresas, gera desconfiança“, pondera. E esse é um quadro que não deve ter solução no curto prazo. Relaxar o controle de capitais pode aprofundar a desvalorização do peso. Com o dólar ainda mais caro, por sua vez, a dívida externa da Argentina dispararia. “Serão necessários alguns anos para que a situação possa ser resolvida”, acrescenta Sanghani.

Para Kalos, “a questão cambial é hoje a principal vulnerabilidade da Argentina”.

Mais do que sua consequência sobre a dívida externa, que foi renegociada no fim do ano passado — em uma vitória política de Fernández —, o principal problema, em sua avaliação, é o impacto de uma desvalorização cambial adicional na inflação.

A inflação na Argentina encerrou o ano passado na faixa dos 35%, em patamar bastante inferior aos 53% de 2019, mas ainda bastante elevado. No Brasil, para efeito de comparação, o IPCA divulgado nesta terça (12/01) registrou alta de 4,52% no mesmo período.

No início de 2020, diante da inflação explosiva, Fernández anunciou o congelamento de preços de uma série de produtos, medida que tentava segurar o avanço da pobreza, que hoje atinge 40% da população argentina, mas que também contribuiu para deteriorar o ambiente de negócios. Os economistas preveem nova alta de preços em 2021, só não se sabe ainda em qual intensidade.

Por que então a Ford escolheu a Argentina?

A Ford anunciou a expansão da fábrica na Argentina em dezembro — um investimento previsto de US$ 580 milhões.

A montadora americana dividia sua produção entre Brasil e Argentina conforme o porte dos veículos produzidos. Enquanto a operação brasileira fabricava veículos leves, a argentina estava encarregada de automóveis pesados, como a Ranger.

Nos últimos anos, entretanto, o ambiente competitivo no setor automotivo vem passando por transformações profundas, diz Flavio Padovan, ex-CEO da Jaguar Land Rover e ex-diretor de operações da Ford no Brasil e na América do Sul.

“Há grandes movimentos na busca por sustentabilidade, de um lado, e sobrevivência, de outro”, avalia ele, que hoje é sócio da MRD Consulting.

Há cada vez mais empresas de tecnologia engajadas em produzir soluções sustentáveis para o mercado automotivo — a exemplo dos projetos de automóveis do Google e da Amazon — e uma mudança significativa na forma como o consumidor enxerga o carro próprio, especialmente os mais jovens.

“Não existe mais aquele sentimento de posse. Hoje as montadoras vendem cada vez mais para empresas (como locadoras de automóveis) do que para indivíduos.”

Nesse cenário, a Ford optou por focar em um nicho, o das picapes, em vez apostar no volume, em uma presença massiva no mercado. Como a Argentina já era referência na fabricação desses veículos, “foi natural” que ela mantivesse a operação, acrescenta Padovan.

Além da Ford, anunciaram recentemente novos investimentos na Argentina as montadoras japonesas Nissan (US$ 130 milhões) e a Toyota (US$ 50 milhões) — o que, para o economista argentino Martín Kalos, da EPyCA Consultores, reforça que o país não vive uma fuga de empresas estrangeiras, apesar de ter hoje um ambiente de negócios que, de maneira geral, desestimula o investimento produtivo.

No Brasil, a montadora americana fecha três fábricas, em Taubaté (SP), Camaçari (BA) e Horizonte (CE), que empregam diretamente cerca de 5 mil pessoas. O impacto indireto, contudo, deve ser maior, já que empresas de autopeças e outros fornecedores também terão de ajustar suas operações à saída da multinacional.

Em entrevista à BBC News Brasil, o prefeito de Camaçari, Elinaldo Araujo, afirmou que a cidade deve perder cerca de 12 mil empregos com a decisão da montadora americana de encerrar as atividades no local. Entrariam na conta os empregos diretos — os funcionários que trabalham para Ford — e vagas em empresas que prestam serviços para a montadora ou fornecem insumos para a produção de automóveis.

Apesar de que a ideia de deixar o país estivesse sendo amadurecida “há anos”, segundo Padovan — a fábrica em Camaçari, disse ele, era uma espécie de “projeto de salvação” para tentar manter a operação —, o anúncio pegou os brasileiros de surpresa nesta segunda (11/01).

A estratégia de comunicação, para o consultor, “não foi a melhor”, e se assemelhou à utilizada em 2019 também pela Ford por ocasião do encerramento das operações da fábrica de caminhões em São Bernardo, quando nem os funcionários tinham ideia de que seriam demitidos.

// BBC

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