“As divas fazem parte do meu mundo e eu do delas. Elas nunca foram estranhas para mim. Meu avô tinha um teatro, minha mãe é atriz e eu também sou atriz. Nós herdamos esse teatro Rival, onde vivi as memórias mais fortes da minha infância, nos bastidores, na beira do palco”. É assim que a atriz Leandra Leal começa o filme Divinas Divas, seu primeiro longa-metragem como diretora, que estreou na quinta-feira (22) nos cinemas.
Enquanto Nelson Gonçalves canta Escultura, sobre o sonho de uma mulher perfeita, fotos de homens vão se transmutando em glamorosas mulheres: “Cansado de tanto amar / eu quis um dia criar / na minha imaginação / uma mulher diferente / de olhar e voz envolvente / que atingisse a perfeição”.
Elas então surgem na tela, que compõem a primeira geração de artistas transformistas brasileiras: Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Camille K., Fujika de Halliday, Eloína dos Leopardos, Marquesa e Brigitte de Búzios.
O fio condutor do filme é a memória afetiva da diretora, neta do dono do Teatro Rival, que foi um dos primeiros palcos no Brasil a apresentar homens vestidos de mulher, ainda em plena ditadura militar. Leandra cresceu nas coxias, entre plumas, paetês, brilho, roupas e maquiagens deslumbrantes.
“Esse tema fala sobre o que me constitui, sobre a minha história, sobre a minha família. E, ao mesmo tempo, pela relação que tinha com elas, sempre acreditei que só eu poderia fazer esse filme”, afirma.
“Quando eu tinha apenas um mês, uma peça escrita pela minha mãe estava em cartaz. A atriz teve problemas de saúde e ela foi convocada às pressas para o papel. Eu ia bebezinho no colo dela para o teatro toda noite e ficava na coxia, com a camareira, quando ela entrava em cena”, declara a diretora durante o filme.
“Fizeram uma roupa de mini-vedete para mim e no final do espetáculo, minha mãe me levava ao palco. Foi aqui que eu estreei, neste mesmo palco em que hoje as divas encenam suas trajetórias para serem eternizadas“, acrescenta.
Mas não se trata de um filme sobre Leandra Leal. Ao contrário. Sua voz pontua apenas algumas passagens do longa-metragem, com pouquíssimas e efêmeras aparições. As estrelas do documentário são estas outras mulheres, artistas que representam a história da arte performática no país.
Além contar a trajetória das oito divas, Leandra acompanha o processo de construção de um espetáculo homônimo que celebra os 50 anos de carreira do grupo: os ensaios, as discussões, as memórias de dias gloriosos mas também das enormes dificuldades que enfrentaram (e ainda enfrentam) por seus corpos e sua arte serem uma espécie de ato político que revolucionou o comportamento sexual da sociedade brasileira.
No palco, divas
Humor e drama se alternam de maneira natural e equilibrada durante todo o longa-metragem. Há também uma ode ao feminino em seu sentido mais amplo: sobre a força necessária para ser mulher quando não se nasce mulher, os preconceitos de gênero ainda mais acentuados quando se trata de mulheres trans, as vaidades, o medo de envelhecer, os amores e as dores.
Tudo vem à tona com força e graça. Rogéria, por exemplo, provocadora e engraçada, se diz “a travesti da família brasileira”.
Modesta, Fujika de Halliday reflete sobre a palavra que dá nome ao filme: “Diva é uma coisa muito séria, né, gente? Diva é diva! Eu sou diva? Será? Oh, meu Deus… Divas são essas mulheres maravilhosas, Maria Callas e essas mulheres divinas, divas. Ser artista é bom, eu gosto”, afirma, sorrindo.
Apesar de toda censura e opressão que elas sofreram durante a ditadura, Jane di Castro acredita que é ainda mais difícil ser travesti nos dias de hoje.
“Ninguém se transformou para se prostituir. Eu não tenho nada contra a prostituição. Pra mim, prostituição é uma coisa normal, é uma profissão que deveria ser legalizada. Principalmente para as travestis, que não têm espaço. Se travesti não se prostituir, vai morrer de fome mesmo, porque não tem emprego. Travesti, hoje em dia, piorou. Porque elas não são artistas, porque também não têm espaço”, diz Jane.
“Naquela época, tinha espaço e nós trabalhávamos de terça a domingo, com duas sessões na quinta, três no sábado e três no domingo, com casa lotada. Hoje em dia, elas não têm espaço para trabalhar, não têm teatro, não têm nada pra trabalhar“, completa.
“Então, o que têm que fazer? Se prostituir, ganhar o dinheiro delas, senão elas vão morrer de fome. Eu sou totalmente à favor da prostituição. Cada um faz do seu corpo o que quer. Tem de ganhar dinheiro, meu amor, tem de comer, beber, vestir… Sem ser marginal, eu admito tudo. Eu não gosto de marginalidade“, acrescenta.
Divinas Divas apresenta as artistas glamorosas, vestidas para o show business, mas mostra também as pessoas que existem debaixo da maquiagem pesada e das roupas deslumbrantes. Traz à tona, por exemplo, a história de Marquesa, que foi internada em um sanatório pela família e decidiu que iria se travestir apenas nos palcos para não afrontar a mãe.
A única das oito artistas a usar roupas masculinas no dia a dia tem uma saúde frágil que contrasta com suas performances intensas. Marquesa morreu aos 71 anos, em 2015, antes de ver o filme finalizado.
Aliás, este é o maior trunfo do filme: eternizar estrelas cujas existências cintilaram tanto nos palcos quanto nesta sociedade que ainda hoje se bate contra a homofobia, a transfobia e todos os preconceitos de gênero.
Divinas Divas, assim como as artistas nele retratadas, personifica a resistência de ser quem se é na arte e na vida. Como elas cantam em uma das apresentações: “Je suis comme je suis”, do francês “eu sou como sou”. E é preciso ter muita força, coragem e resiliência para se assumir travesti no Brasil de ontem e de hoje.
O longa ganhou o Prêmio de Melhor Documentário pelo voto popular e foi eleito Melhor Documentário pelo Prêmio Felix, de produções com temáticas relativas à diversidade de gênero, no Festival do Rio 2016, o Prêmio do Público da Mostra Global do Festival South by Southwest, em Austin, no Texas e Melhor Filme pelo Júri Popular e Melhor Direção no 11º Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro, em João Pessoa.