Ex-líder da independência governou país com mão de ferro durante 37 anos, até ser deposto. Ele chegou ao poder com a promessa de um país próspero, mas seu governo foi marcado pelo autoritarismo e pela ruína econômica.
O ex-presidente e líder da independência do Zimbábue Robert Mugabe morreu nesta sexta-feira aos 95 anos, quase dois anos após renunciar ao cargo que ocupou durante 37 anos. O anúncio da morte foi feito pelo sucessor de Mugabe, Emmerson Mnangagwa.
“É com profundo pesar que anuncio a morte do pai fundador e ex-presidente do Zimbábue, o comandante Robert Mugabe”, disse Mnangagwa em seu perfil no Twitter.
O atual presidente, antigo braço direito de Mugabe, disse que o ex-líder era “um ícone da libertação, um pan-africanista que dedicou a sua vida à emancipação e ao empoderamento do seu povo. A sua contribuição para a história da nossa nação e do nosso continente nunca será esquecida. Que sua alma descanse em paz eterna”, acrescentou.
Mugabe morreu num hospital em Cingapura, onde recebia tratamento há pelo menos cinco meses. Segundo informações da imprensa local, ele estava acompanhado da família e da esposa, Grace. Em novembro do ano passado, Mnangagwa anunciou que seu antecessor não conseguia mais andar, mas não esclareceu qual era problema de saúde do ex-presidente.
Mugabe nasceu em 21 de fevereiro de 1924. Na década de 1970, ele liderou uma guerrilha contra o domínio britânico no país. Em 1979, a então primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher, anunciou que o Reino Unido reconheceria oficialmente a independência da Rodésia, o nome do país durante o período colonial.
Mugabe foi eleito como primeiro-ministro no ano seguinte e, em 1987, como presidente, governando o país durante 37 anos, antes de ser perder poder e sofrer um golpe de Estado em novembro de 2017. Ele foi forçado a se afastar do cargo depois de perder o apoio do Exército e de seu partido, a União Nacional Africana do Zimbábue – Frente Patriótica (ZANU-PF).
As primeiras atrocidades
Quando Mugabe chegou ao poder, em 1980, houve quem considerasse a ascensão do professor ao mais alto cargo político do país como uma recompensa pelas suas origens humildes numa família de camponeses.
Sem se deixar abalar pela saída em massa dos colonos brancos logo após a libertação do país, Mugabe canalizou esforços com a promessa pública de que melhoraria a vida dos cidadãos do país. Para tal, começou por introduzir o ensino primário gratuito, bem como o acesso à assistência médica básica para quem tinha baixos rendimentos. As duas medidas, no entanto, chegaram a apenas uma parcela reduzida da população.
Em 1982, eclodiu uma disputa entre o partido de Mugabe, a União Nacional Africana do Zimbabué – Frente Patriótica (ZANU-PF) – e o seu antigo aliado Joshua Nkomo. Nessa sangrenta disputa pelo poder, Nkomo recebeu o apoio da etnia Ndebele, que reside no oeste e no sul do país.
Foi lá que as Forças Armadas, leais a Robert Mugabe, cometeram as piores atrocidades e violações de direitos humanos após a independência do país. A 5° Brigada Militar do seu exército, que foi treinada pela Coreia do Norte, matou aproximadamente 20 mil civis. Muitos deles foram queimados vivos.
Em 1987, Nkomo e Mugabe fizeram as pazes e o chefe de Estado nomeou-o vice-presidente do Zimbábue. Depois disso, o líder centralizou as políticas econômicas na produção de cereais. Longe de atingir os resultados esperados, milhares de cidadãos continuaram dependentes de ajuda humanitária, sem acesso a comida, água potável ou outras necessidades básicas.
Ainda assim, Robert Mugabe era retratado pelas rádios estatais como um herói nacional. “Um veterano político com qualidades de liderança distinta, o camarada Robert Mugabe ganhou as primeiras eleições democráticas do país em 1980 para se tronar primeiro-ministro do Zimbábue”, recordava a principal rádio do país, repetidas vezes, nos anos 80.
O outro lado do presidente era ignorado nos meios de comunicação estatais: um fervoroso católico que mantinha um relacionamento adúltero com a sua secretária, Grace, uma mulher casada que se tornou primeira-dama do Zimbábue depois da morte da primeira esposa do presidente, em 1992.
Mugabe passou de primeiro-ministro para o cargo de presidente em 1987. Ele rejeitou os pedidos para que se aposentasse, apesar das repetidas notícias sobre a deterioração do seu estado de saúde. “Nesta idade eu ainda posso seguir em frente“, justificava-se.
Reformas
Robert Mugabe será sempre lembrado pela sua desastrosa reforma agrária. Para a maioria dos zimbabuanos, as condições de vida pioraram a partir de 2000, quando o setor da agricultura, a espinha dorsal do país, entrou em queda livre.
A catástrofe começou quando Mugabe optou por dar início a um processo de nacionalização forçada das propriedades agrícolas nas mãos da população branca, afirmando que pretendia redistribuí-las para população negra. O líder legitimou a medida com a “necessidade de inverter os desequilíbrios econômicos” entre brancos e negros.
Mas Mugabe, sua família e a elite partidária do ZANU-PF acabaram sendo os grandes beneficiários da medida ao tomarem para si as propriedades. A política também deixou milhares de trabalhadores negros sem trabalho e sem casa. Rapidamente o Zimbábue deixou de ser o celeiro da África, como era conhecido no continente devido à sua produção de cereais, e se tornou um país castigado pela fome.
Em 2002, os Estados Unidos, a União Europeia e vários países do Ocidente aplicaram sanções a Mugabe e à liderança do ZANU-PF, depois da revelação de episódios de fraude nas eleições do país. As sanções acabaram sendo depois utilizadas pelo próprio Mugabe para falsamente justificar os problemas internos.
Em 2007, Mugabe introduziu uma política que obrigou as empresas estrangeiras no país a ceder a sua participação majoritária a zimbabuanos como forma de reverter “desequilíbrios coloniais”.
Nessa altura, a principal rádio estatal do país voltou a bajular o ditador: “sua Excelência, o presidente da República do Zimbábue, o camarada Robert Gabriel Mugabe, um líder altruísta e dedicado, um estadista, um nacionalista, um pan-africanista, um pai e um homem com todos estes valores e muito mais“.
Houve, no entanto, quem mantivesse uma visão crítica, como Obert Gutu, membro do partido Movimento para a Mudança Democrática, que impôs a Mugabe a sua primeira derrota eleitoral nas eleições de 2008.
“Quando nós alcançamos a independência, em 1980, havia uma sensação de esperança e entusiasmo. Todos pensávamos que iríamos prosperar e criar uma nação. Mas, infelizmente, assistimos à traição das aspirações das pessoas e ao fortalecimento da tirania. Temos assistido à criação de um regime intolerante. Infelizmente a maioria dos zimbabuanos hoje é mais pobre do que em 1980”, afirmou o político e advogado.
Ruína econômica
Desde que chegou ao poder, Mugabe viveu anos indiferente aos problemas nacionais. Enquanto a imprensa internacional noticiava casos de hospitais públicos sem medicamentos ou equipamentos sanitários, Mugabe organizava festas milionárias para celebrar o seu aniversário.
A inflação atingiu valor recorde. Os preços duplicavam no mesmo dia e o descontrole financeiro levou o Banco Central a emitir notas de trilhões de dólares zimbabuanos. Circulam no Zimbabué principalmente moedas estrangeiras, como o rand da África do Sul ou o dólar americano.
Os últimos anos do governo de Mugabe ficaram marcados tanto pelos conflitos internos dentro do ZANU-PF, especialmente em relação à sua sucessão, quanto por protestos da população devido aos atrasos no pagamento dos salários.
Depois de 37 anos no poder, Mugabe criou um país onde mais de metade dos cerca de 16 milhões de cidadãos continuavam precisando de ajuda humanitária para enfrentar a fome e epidemias de cólera.
Atualmente, o Zimbábue atravessa sua pior crise econômica em uma década, com inflação de três dígitos, cortes no fornecimento de energia e escassez de itens essenciais e de dólares no mercado.
Após liderar o Zimbábue por mais de três décadas, Mugabe será provavelmente lembrado como um homem de duas faces: o combatente pela liberdade que prometeu uma nação próspera, mas que se tornou o ditador de um povo que vive na extrema pobreza.