A proposta de erradicação da fome lançada pelo prefeito da capital paulista, João Doria, no domingo (8), foi considerada um retrocesso por especialistas em nutrição ouvidos pela Rede Brasil Atual (RBA).
A ideia é receber doações de sobras de alimentos que seriam descartados pela indústria ou comércio e processá-los para produzir um “granulado nutricional” que será distribuído à população de baixa renda. Os doadores vão receber benefícios econômicos e isenção de impostos.
“É curioso São Paulo, a maior cidade do país, investir em uma política que é muito antiga, pelo menos 15 anos atrasada. É uma política que vai à contramão de tudo que a gente está produzindo para promover saúde”, afirmou Ana Carolina Feldenheimer, professora de Nutrição Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável.
Ana Carolina ressaltou que o país hoje vive um problema com a obesidade e não com desnutrição. E considerou curioso a gestão Doria propor essa política, depois de alegar que reduziu itens da merenda escolar para combater a obesidade. Assim como diminuiu a aquisição de produtos orgânicos distribuídos nas escolas.
“Alimentação não é só ter nutrientes disponíveis para a população. É ter alimentos saudáveis, frescos de boa qualidade, diferenciados. E não um refugo da sociedade para alimentar a população mais pobre”, afirmou.
A Política Municipal de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos foi estabelecida pela Lei 16.704/2017, sancionada no último domingo.
A partir dela, a prefeitura elaborou o projeto Alimento para Todos, em parceria com a Plataforma Sinergia, que consiste em produzir o alimento, “um granulado nutritivo” que pode ser adicionado às refeições ou utilizado na fabricação de outros alimentos, como pães, bolos, massas e sopas.
O produto será produzido pela Sinergia e distribuída nas cestas básicas entregues pelos Centros de Referência de Assistência (CRAS).
Em seu site, a Plataforma Sinergia informa ter desenvolvido “um sistema de beneficiamento de alimentos que não são comercializados pelas indústrias, supermercados e varejo em geral”.
“O que a prefeitura devia fazer era incentivar o pequeno agricultor, oferecer empréstimos a juros baixos, possibilidade de mercados na periferia de São Paulo. O que vai superar a anemia, a carência de vitamina A, a desnutrição ou a obesidade é comer comida de boa qualidade. Arroz, feijão, carne, verdura, é isso que a gente defende para a população como um todo”, ressaltou Ana Carolina.
“Produtos que seriam lixo, que a indústria teria de pagar para se livrar, porque hoje no Brasil quem gera lixo acima de determinada quantidade tem de pagar para recolher. Vai baratear esse custo ao mandar para a população esse complemento que a gente não sabe nem de onde veio, nem quais os produtos que vão nele”, criticou.
Os ganhos das empresas com a doação de sobras de alimentos vão além de se livrar do descarte. Vão receber incentivos econômicos da prefeitura de São Paulo, conforme descrito no artigo 9 da lei.
Serão facilitados os empréstimos, “compreendendo a concessão de financiamentos em condições favorecidas, admitindo-se créditos a título não reembolsável”; criados “programas de financiamento e incentivo à pesquisa e desenvolvimento de tecnologias” afeitos à proposta; e concedidas isenções do Imposto Sobre Serviços (ISS) e do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).
A doutora em Alimentos e Nutrição pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Elke Stedefeldt ressaltou que a proposta de Doria “é ofensiva à Política Nacional de Alimentação e Nutrição”.
“Entende-se por Segurança Alimentar e Nutricional a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”, explicou Elke.
Para a professora, não pode ser considerada segurança alimentar e nutricional a transformação de alimentos sem critérios de monitoramento quanto ao risco de doenças transmitidas em produtos ultraprocessados.
Ela avaliou ainda que a medida contraria o Guia Alimentar para a População Brasileira e que não deve ter sido dialogada com as organizações que estão há anos desenvolvendo este tipo de trabalho em São Paulo.
A RBA procurou o Conselho Regional de Nutrição (CRN), mas não obteve retorno. A Secretaria Municipal de Trabalho e Empreendedorismo não respondeu até o fechamento da reportagem.
A Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania enviou nota à RBA em que afirma que “a Lei 16.704/2017 acabou de ser sancionada. A Política Municipal de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos está sendo elaborada e será aprovada seguindo as normas e em conjunto com as políticas nacionais e também de acordo com as necessidades e anseios da população”.
Ciberia // Brasil de Fato