A partir de sábado (17), a França entra em uma nova fase da luta contra a epidemia de coronavírus. Na noite de quarta-feira (14), o presidente francês, Emmanuel Macron, anunciou medidas inéditas para tentar barrar a propagação da doença no país: a principal delas é o toque de recolher, das 21h às 6h, na grande região parisiense e em outras oito cidades francesas por ao menos quatro semanas. Mas será que essa restrição é mesmo eficaz contra a disseminação da Covid-19?
Há poucos dados disponíveis sobre a eficácia do toque de recolher para lutar contra uma epidemia. Em entrevista ao jornal Le Parisien, o historiador Patrick Zylberman afirma que essa essa medida jamais foi determinada em nível nacional por razões sanitárias.
No entanto, na noite de quarta-feira, o presidente francês garantiu que o toque de recolher é um método importante porque “diminui os contatos sociais“. Para justificar a restrição, Macron citou o exemplo da Guiana Francesa, onde a medida foi utilizada de forma variável, durante alguns meses, desde meados deste ano.
Segundo um estudo pré-publicado nesta segunda-feira, do qual participou o Instituto Pasteur, o toque de recolher na Guiana Francesa permitiu reduzir 36% da circulação do coronavírus. “Com essa restrição, nos beneficiamos de uma redução da metade do pico das hospitalizações nas UTIs”, afirmou a diretora da Agência Regional de Saúde da Guiana Francesa, Clara de Bort, em entrevista à Franceinfo.
Os autores da pesquisa constararam que, efetivamente, depois da determinação do toque de recolher na Guiana Francesa, a chamada “taxa R” de reprodução do vírus passou de 1,7 à 1,1. A quantidade diária de novas contaminações diminuiu de 350 a 80, um mês depois que a medida foi colocada em prática.
Os cientistas que participaram do estudo salientam, no entanto, que outras restrições foram adotadas simultaneamene neste território francês, como o fechamento das fronteiras com o Brasil, um dos países mais castigados pela pandemia.
Médicos e cientistas se pronunciam sobre a medida
Entrevistado pela RFI, Djillali Annanne, chefe do serviço da UTI do hospital Raymond-Poincaré de Garches, na região parisiense, afirma que o toque de recolher é indispensável para evitar uma saturação do sistema de saúde.
“Se essa medida for eficaz, nós começaremos a ver os resultados de 15 dias a 3 semanas. E ela deve ser mantida até que a taxa de ocupação de pacientes de Covid em leitos de terapia intensiva fique abaixo de 10% e que o número de casos confirmados a cada dia desça a menos de 5 mil”, recomenda.
O professor de Epidemiologia de doenças infecciosas da Universidade de Montpellier, Mircea Sofonea, acredita que o toque de recolher pode ser uma boa opção para acirrar a luta contra a Covid-19.
“Desde o relaxamento do lockdown, vemos que as medidas de barreira, como o uso de máscara, o distanciamento físico, o estímulo ao home office e a proibição de grandes aglomerações, não são obstáculos, mas freios contra a epidemia“, diz, em entrevista ao jornal Libération.
Outro especialista no assunto, o clínico geral Michaël Rochoy, chefe de Clínica da Universidade de Lille, afirma que o toque de recolher diminui as saídas noturnas, o que pode ser positivo em um momento no qual a França registra uma média de 20 mil contaminações diárias por coronavírus. “Claro, nas pequenas cidades, isso não serve para nada, mas não podemos fechar os olhos para a vida noturna agitada de Paris, Madri e Berlim”, ressaltando, em entrevista ao jornal 20 Minutes, que “sabe-se que há duas vezes mais possibilidades de se contaminar em bares e restaurantes que em outros locais”.
Especialistas expressam ceticismo
Outros especialistas não estão convencidos que o toque de recolher seja eficaz para barrar a epidemia. “O problema é que não podemos estabelecer uma correlação entre essa medida e a redução das contaminações porque o toque de recolher não foi a única restrição imposta na Guiana Francesa contra o vírus”, afirma ao jornal 20 Minutes Michèle Legeas, professora da Escola de Altos Estudos em Saúde Pública, especialista em análise e gestão de situações com riscos sanitários.
Além disso, alguns médicos afirmam que, se essa é uma solução para limitar as consequências econômicas nas empresas, o toque de recolher não substitui o fechamento de locais considerados como focos da epidemia. “As contaminações acontecem muito nas empresas, universidades e escolas”, diz à Franceinfo Nathan Peiffer-Smadja, infectologista no hospital Bichat, em Paris.
De fato, de acordo com a agência Saúde Pública da França, empresas (25%), escolas e universidades (21%), encontros familiares e eventos públicos e privados (17%), são os principais locais de transmissão do coronavírus depois das casas de repouso para idosos. Por isso, para Peiffer-Smadja, é preciso que o governo insista principalmente na necessidade do home office para tentar desacelerar a segunda onda de Covid-19.
// RFI