País mais afetado pela pandemia de coronavírus em todo o mundo, os Estados Unidos dependem da aprovação de vacinas ainda em fase de testes para poder imunizar sua população. É o que conta o médico brasileiro Luís Fernando Correia, membro do American College of Physicians. Ele falou à RFI de Orlando, na Flórida, onde vive e acompanha a evolução da crise sanitária.
Enquanto a França e outros países europeus começaram suas campanhas de vacinação contra a Covid-19 no último fim de semana (26 e 27), os americanos iniciaram a imunização em 14 de dezembro, com a vacina da Pfizer-BioNTech.
O país ainda tem a autorização para aplicar a vacina da Moderna, que foi liberada para uso emergencial pela FDA (agência reguladora dos Estados Unidos) no dia 18 de dezembro e começou a ser aplicada no último dia 21.
“Os Estados Unidos fizeram um movimento interessante no início, colocando dinheiro público por meio do Instituto Nacional de Saúde na pesquisa da Moderna, que é uma plataforma revolucionária de vacinas. O país já comprou vacinas suficientes para imunizar toda a população. Porém, apenas metade dessas doses é de vacinas já aprovadas”, afirma Correia.
“Ainda falta que a vacina da Johnson & Johnson seja aprovada – que deve ser submetida à aprovação da FDA no início de janeiro e com certeza vai ser aprovada – e também a vacina da AstraZeneca/Oxford, que deve ser submetida à agência regulatória do Reino Unido nos próximos dias e que deve ser aprovada”, cita.
“Com essas quatro plataformas, os Estados Unidos têm, em tese, vacina para todo mundo. Só que o processamento dessas ordens, a distribuição e a aplicação dessas vacinas vão se estender, se tudo der certo, até o verão, ou seja, final de julho ou agosto de 2021”, completa.
Pandemia acelera nos EUA
Nos últimos dias, os Estados Unidos testemunharam uma aceleração expressiva de contaminações por Covid-19, com cerca 200 mil novos casos confirmados e 3 mil mortes por dia. O imunologista da Casa Branca, Anthony Falsi, e o presidente eleito, Joe Biden, temem um possível agravamento da epidemia após as festas de fim de ano.
“A situação é bastante grave porque esse aumento de casos e mortes que estamos vendo nos Estados Unidos ainda é reflexo das festas do dia de Ação de Graças, no fim de novembro.
A conta do Natal e do Ano Novo só vai chegar em meados de janeiro. Então, o doutor Falsi é realista quando espera esse agravamento e, possivelmente, teremos uma curva ascendente até fim de janeiro e início de fevereiro”, afirma Correia.
Profissionais de saúde e vulneráveis primeiro
Como na Europa, a vacinação nos Estados Unidos também prioriza os profissionais de saúde, idosos em asilos e os mais vulneráveis. Até agora, somente a Indonésia apresentou um plano diferente de vacinar os mais jovens primeiro.
“Essa estratégia não tem lógica alguma porque os jovens não representam o grupo de maior risco de morrer da doença”, explica Luís Fernando Correia. “A lógica da vacinação é: primeiro os profissionais de saúde porque estão expostos a uma carga viral maior, e logo depois os idosos e os doentes crônicos”, acrescenta.
“Aqui na Flórida, a previsão é de que todos os profissionais de saúde sejam imunizados até o fim do ano. A partir da semana que vem, começam a ser vacinados aqueles que trabalham no atendimento direto da população, como bombeiros e policiais, além de todos os residentes de casas de repouso que se cadastraram”, explica o especialista.
Na Europa, o início da vacinação coincide com a chegada de uma variante do coronavírus, originária do Reino Unido. “Vamos lembrar que já aconteceram centenas, talvez milhares de mutações desse vírus nesse ano de pandemia. Nenhuma, no entanto, o tornou mais letal”, observa Correia.
“O que o vírus quer é achar alguém que não esteja protegido, infectar essa pessoa, se multiplicar dentro dela e se espalhar para contaminar mais hospedeiros, ou seja, mais seres humanos. Se esse vírus matar muito rapidamente essa pessoa, ele não tem tempo de se espalhar”, explica.
“A evolução natural do vírus é se tornar mais infectante, para contaminar mais gente, mas não pode matar o hospedeiro. Esse é o caminho natural da evolução de um vírus. Mas isso não deve atrapalhar as estratégias de vacinação porque as mutações foram muito discretas em termos de estrutura do vírus”, afirma o especialista.
Resistência à vacina
Uma vez aprovadas as vacinas, os governos ainda precisam convencer os cidadãos a se vacinarem. Na França, um dos países mais resistentes, apenas 44% da população pretendem se vacinar. “Não tem como alguém justificar porque não quer se vacinar”, diz o médico.
“Eu não me vacino só por minha causa, mas pelos outros. Tem muita gente que não pode receber essa vacina por questões médicas, como crianças e adultos em tratamento de câncer, infectados pelo vírus da AIDS, pessoas com alergias extremas. Você tem que se vacinar porque quer que a sua comunidade seja saudável”, observa.
“Normalmente a gente diz que uma cobertura vacinal ideal seria acima de 85%. Mas a própria Organização Mundial da Saúde já baixou para algo perto de 50%, e uma expectativa conservadora e lógica é de que a gente chegue a um meio termo, ou seja, 70% da população vacinada, o que vai fazer com o que vírus circule muito pouco”, prevê.
“A gente não vai conseguir acabar com o novo coronavírus, ele não vai sumir, só que a gente quer que ele circule pouco e para isso tem que ter muita gente vacinada”, insiste.
“E as pessoas vão receber a vacina e terão que continuar usando máscaras, lavando as mãos e mantendo o distanciamento social porque só quando atingirmos a tal imunidade de rebanho, talvez em um ano, aí a gente possa diminuir o nível de precaução. Mas esse cuidado todo vai impactar positivamente nas doenças respiratórias, porque passamos a ser mais educados”, avalia.
Para quem desconfia que a vacina contra a Covid-19 foi desenvolvida rápido demais, o doutor Luís Fernando Correia lembra que os estudos já haviam começado há bastante tempo. “Essas vacinas têm 18 anos de evolução. A primeira pandemia de coronavírus foi a do SARS, Síndrome Respiratória aguda, em 2002 e 2003, que rodou o mundo inteiro, atingindo 80 países. Ou seja, os cientistas já estavam pesquisando vacinas contra coronavírus desde essa época e agora a pesquisa culmina com essa descoberta da vacina, em 2020”, conclui.
A questão agora é evitar uma guerra por essas doses tão preciosas, explica o médico, citando o caso da Europa. “Eu tenho medo de chegar uma hora em que a vacinação vai estar andando devagar, a pressão vai aumentar internamente e os países podem reagir com medidas como querer comprar mais do que o já acordado com a Comunidade Europeia. Existe, portanto, o risco de uma guerra comercial desse tipo”, finaliza.
// RFI