Brasileiros viram “moradores fantasmas” na Itália para evitar fila de mais de uma década por cidadania

Arbalete / Wikimedia

A pitoresca cidade italiana de Ospedaletto Lodigiano

A prefeita de Ospedaletto Lodigiano, um pacato vilarejo com pouco menos de 2 mil habitantes no norte da Itália, está preocupada. “Estamos vivendo um período terrível. Nossa cidade agora vai ficar conhecida por esse escândalo”, diz Lucia Muzzi à BBC.

A prefeita está se referindo à revogação da cidadania italiana de mais de mil brasileiros, ordenada por ela própria no início de fevereiro. A decisão foi uma das consequências de uma operação realizada em julho de 2017 pela Guardia di Finanza, polícia especial que investiga crimes financeiros e de corrupção, entre outros.

Isso culminou na prisão de quatro pessoas: um casal de brasileiros, que são donos de uma agência de imigração, um comissário de polícia e um funcionário da prefeitura. Todos são acusados de ajudarem a fraudar o processo de obtenção da cidadania por meio de falsos atestados de residência conferidos aos brasileiros.

Fomos vítimas de um golpe. Desde então, nossos funcionários têm trabalhado quase exclusivamente para contornar a situação”, afirma Muzzi.

Milhares de brasileiros descendentes de italianos têm recorrido a esta e outras cidades do país para dar entrada em seus pedidos – caso sejam confirmados como cidadãos italianos, poderão viver e trabalhar legalmente em qualquer país da União Europeia e visitar lugares como os EUA sem a necessidade de visto, entre outras vantagens.

No Brasil, com uma estimativa de 450 mil descentes de italianos nas filas dos consulados, o processo pode levar até 13 anos. Na Itália, tudo é resolvido em questão de meses. Por isso, uma alternativa para quem tem condições financeiras é contratar intermediários no país europeu, pagar entre 4 mil e 6 mil euros (R$ 16 mil a R$ 24 mil) e fazer as malas para ir para lá.

A lei diz que pessoas com direito à cidadania italiana podem realizar o processo em qualquer cidade, mas devem morar no país durante o andamento do processo e registrar moradia junto aos cartórios municipais. Muitos brasileiros, uma vez concluído o trâmite, vão embora – tudo dentro da lei. Mas permanecem cadastrados como residentes.

Isso isso vem causando problemas para algumas dessas cidades. Em alguns locais, há suspeitas de irregularidades e, no caso de Ospedaletto Lodigiano, a fraude foi confirmada, e as cidadanias conferidas, canceladas.

No total, 1.188 brasileiros declararam residir em Ospedaletto Lodigiano entre julho de 2015 e julho de 2017 – 899 já tinham obtido o passaporte europeu, enquanto os demais aguardavam, fora da Itália, que os documentos fossem enviados por intermediários pelo correio.

“Sinceramente, não sei se os brasileiros que constam desta lista estavam ou não agindo com boa-fé, mas, com certeza, se essas pessoas tivessem efetivamente se transferido para a nossa cidade, qualquer um teria notado. Não temos nem hotéis na cidade. É impossível que todos eles tenham estado aqui”, afirma a prefeita.

Pilhas de arquivos e problemas

A 400 quilômetros de distância dali, no vilarejo de Val di Zoldo, em meio aos alpes italianos, no nordeste do país, os brasileiros já são quase metade dos 3,2 mil moradores registrados. Mas quase todos eles hoje não vivem mais na cidade.

Os brasileiros descendentes de italianos costumam se hospedar em uma casa no pé das montanhas para adquirir a residência na cidade, condição primordial para o processo. Depois da inspeção oficial, vão embora, tudo dentro da lei.

Só no último semestre, Val di Zoldo recebeu 14 novos pedidos de registro de residência, o que vem criando problemas para a administração municipal.

“Não estamos preparados para isso”, diz o prefeito, Camillo De Pellegrin, apontando para as duas funcionárias do departamento demográfico, cercadas pela papelada e pilhas de arquivos que crescem sobre as mesas.

Além de cuidar dos processos de cidadanias, elas precisam atender as necessidades de quem realmente vive ali. Uma das funcionárias conta que costumava levar quatro meses para dar conta de um processo. “Mas, agora, deve atrasar, porque estamos sozinhas”, diz ela, acrescentando não ter detectado nenhuma irregularidade até agora.

A região de Veneto, onde fica o vilarejo, é famosa pela imigração ocorrida a partir de meados do século 19, principalmente para o Brasil. Val di Zoldo tem inclusive uma cidade-irmã em Santa Catarina, Siderópolis, que foi fundada por italianos.

O cadastro de italianos residentes no exterior, conhecido pela sigla em italiano AIRE, aponta o Brasil como líder das estatísticas em Veneto. São 107.392 cidadãos brasileiros inscritos. Os argentinos e suíços vêm num distante segundo e terceiro lugar, com 46.816 e 43.193 inscritos, segundos dados oficiais de 31 de dezembro de 2016 publicados pelo Ministério do Interior em maio do ano passado.

“Uma pessoa humilde fica na fila por dez anos nos Consulado de São Paulo porque não pode ter acesso a uma agência aqui, pagando altas somas de dinheiro. Isso não gera uma discrepância no tratamento?”, questiona o prefeito.

Marcelo Camargo / Agência Brasil

“Acima de qualquer suspeita”

Pellegrin conta que um brasileiro costuma prestar assistência aos candidatos à cidadania. Ele diz ter recebido ainda uma denúncia de que passaportes falsos podem estar sendo produzidos no Brasil e já encaminhou o caso para as autoridades investigarem.

“Há uma preocupação de que exista alguma coisa por trás de tudo isso, com organizações tornando esses processos um negócio lucrativo. Temos visto pessoas sendo condenadas por práticas ilícitas”, diz ele, em relação ao caso de Ospedaletto Lodigiano.

A BBC conversou com alguns dos brasileiros que tiveram a cidadania cancelada pela Prefeitura de Ospedaletto Lodigiano. Todos afirmam ter agido com boa-fé. “Nunca pensei que eu estivesse contrariando alguma regra ou que teria problemas com minha cidadania”, afirma Paula, uma empresária de São Paulo. O nome é fictício – ela pede para não ter o verdadeiro publicado.

Ela conta ter contratado uma agência em Monza indicada por uma professora universitária que frequentava o consulado em São Paulo. Paula afirma ter pago aos intermediários, em novembro de 2016, 5 mil euros pela hospedagem de uma semana na Itália, transporte até as repartições públicas e assistência junto aos guichês, além de mais 200 euros para obter o código fiscal, equivalente ao CPF brasileiro.

“As pessoas que nos ajudaram com a viagem e o procedimento na Itália pareciam estar acima de qualquer suspeita. São ítalo-brasileiros cultos, que já realizaram muitos processos de cidadania ao longo dos anos”, conta.

A empresária conta que ela e outros quatro brasileiros foram à prefeitura acompanhados por um dos donos da agência, que era conhecido e bem recebido em toda a cidade. “Somos um grupo de quase 600 clientes, entre professores, advogados, juízes e inclusive diretores de multinacionais que vivem nos Estados Unidos. A prisão dos donos da agência foi uma surpresa para nós”, acrescenta.

Gabriela (nome também fictício), uma advogada do Rio de Janeiro que conheceu Paula durante a viagem à Ospedaletto Lodigiano, afirma ter ficado hospedada na casa da intermediária, com outros brasileiros.

A lei não exige que tenhamos um contrato de aluguel em nosso nome. Podemos ser hospedados por alguém que já tenha residência no país. Todos tínhamos direito à cidadania. Estávamos certos de que agíamos corretamente, diz Gabriela, que, após conseguir a nacionalidade, mudou-se para Portugal.

Agora, ela terá de voltar ao Brasil para recomeçar o processo.

Começar de novo

Tiziana Fiorella, advogada de dez brasileiros envolvidos no caso, afirma que recorrerá contra a decisão da prefeita Mizzi.

“A resolução da prefeitura que revoga as cidadanias não especifica a situação de cada requerente. Estamos analisando caso a caso, mas o procedimento generalizado é a primeira falha a ser questionada”, disse à BBC.

Apesar do aumento no número de fraudes envolvendo brasileiros em busca do passaporte europeu, não estão previstas mudanças nas regras de cidadania italiana por descendência.

“É pouco provável que isso aconteça, até porque somos 60 milhões de descentes de italianos em todo o mundo”, diz à BBC a deputada ítalo-brasileira Renata Bueno, eleita para ao parlamento italiano com o voto de italianos residentes na América do Sul.

“O que pode vir a acontecer é o governo italiano dificultar o processo de obtenção da cidadania para descendentes diretamente na Itália”, afirma.

Ela explica que o cancelamento das cidadanias por si só não traz consequências penais aos requerentes, tampouco acarreta a perda do direito à cidadania. “Mas eles terão que reiniciar o processo“, afirma Bueno.

Este não será o caso dos Rigon, os únicos brasileiros de carne e osso a caminhar pelas ruazinhas de Val di Zoldo. Em um chalé com vista para as montanhas, a poucos passos da sede da prefeitura, a família de Santa Catarina espera o tempo passar.

Rosa Maria Rigon Dorneles e seus dois filhos são quem têm direito à cidadania. Seu marido pediu licença do emprego para acompanhá-la. O namorado de sua filha também foi para a Itália. Eles dispensaram a ajuda de um despachante e planejaram tudo por conta própria e com antecedência.

O aluguel da casa foi fechado ainda em Criciúma, onde viviam, com uma brasileira, proprietária do imóvel. Todos estão prontos para uma permanência longa. Incluíram no orçamento a hipótese de uma ou outra ida ao Brasil. Só irão embora quando Rosa e os filhos se tornarem cidadãos italianos.

Optamos por fazer tudo da forma correta, por nossa conta, quero dizer, ficar morando aqui até conseguir a cidadania. Depois, quem sabe, alternar temporadas aqui e lá no Brasil”, diz Rosa.

“Viemos movidos pela paixão pela cultura italiana. Sou descendente de italianos. Sempre tive muita vontade de ter a cidadania, mas não é para trabalhar em outros lugares, como muita gente está fazendo.”

Apelo aos brasileiros

Os Rigon são citados pelo prefeito como um bom exemplo a ser seguido. Ele explica que o aumento de “residentes” brasileiros gera nele outra preocupação. “Neste ritmo, em breve, vão ter mais residentes que vivem no exterior do que os habitantes locais – ambos com direito a voto, que, na Itália, não é obrigatório”, diz.

Isso pode impedir que a cidade alcance o quórum mínimo para uma consulta popular ou uma eleição municipal, explica o prefeito. “Hoje, a exigência de presença da metade mais um dos eleitores aptos não seria cumprida, porque os inscritos que vivem no exterior nunca votam no município”, conta.

Val di Zoldo, assim como outras comunidades italianas nas montanhas, luta para repovoar seus vales. Por isso, o prefeito faz um apelo aos brasileiros.

“Temos uma história de imigração para a América do Sul. Nossos antepassados construíram a vida lá. Ficaríamos muito felizes se essa rota se invertesse“, diz ele que pretende valorizar os dotes turísticos da cidade. “Temos muitas casas vazias. Agora, precisamos de pessoas que queiram reconstruir o nosso futuro”, conclui.

Ciberia // BBC

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1 COMENTÁRIO

  1. Viram fantasmas por não seguirem as regras !!
    Apos o reconhecimento da cidadania, e retornarem aos seus países ou irem morar em outro país que não seja a Itália, tem que ser feito o AIRE nas representações diplomáticas da Itália no exterior.
    Isto “retira” o nome do registro de moradores na cidade onde eles fizeram o reconhecimento, e os registra como moradores no exterior.

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