Estima-se que até 50% dos recifes de corais já desapareceram dos oceanos. A previsão para o futuro também não é animadora: uma projeção da Unesco apontou que, caso as mudanças climáticas não sejam revertidas, eles serão extintos até o final deste século.
Conforme a temperatura do oceano aumenta — uma consequência do aquecimento global —, os corais perdem suas cores, tornam-se esbranquiçados e, por fim, morrem.
Esse cenário desastroso levou pesquisadores brasileiros a utilizar uma estratégia nova para tentar conservar a espécie: o congelamento dos gametas — células sexuais dos corais que conjugam espermatozoides e óvulos dentro de uma mesma estrutura.
A ideia é que, no futuro próximo, o material genético possa ser descongelado e usado para repovoar algumas regiões da costa onde a incidência de recifes diminuiu nos últimos anos, como Porto de Galinhas, no litoral de Pernambuco. Ou seja, o objetivo é que, em breve, o Brasil consiga produzir “corais de proveta”, animais reproduzidos em laboratório e que, depois, poderão ser transportados para algum ponto do mar.
“O aquecimento do oceano e o rápido desaparecimento dos recifes acenderam uma luz vermelha de que precisávamos fazer algo para tentar conservar a espécie. Estamos usando uma tecnologia conhecida como criobiologia (área nova da ciência que estuda os efeitos de baixas temperaturas em células, tecidos e organismos vivos)”, explica Leandro Godoy, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e coordenador técnico do projeto.O programa é encabeçado pelo Instituto Coral Vivo e financiado pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.
A Mussismilia harttii, uma das espécies endêmicas de coral na costa brasileira, é um animal hermafrodita, ou seja, um mesmo indivíduo produz e expele tanto o espermatozoide quanto o óvulo necessários à reprodução.
Esse material é lançado dentro de um invólucro (uma espécie de cápsula) de cerca de 1,5 centímetro de diâmetro, os gametas. Cada um desses “pacotinhos” jogados na água, como explica Godoy, contém bilhões de espermatozoides e centenas de óvulos.
O sêmen dos corais pode sobreviver na água por até 22 horas — o de muitos peixes marinhos, por exemplo, vivem de 15 a 20 minutos, apenas. O espermatozoide precisa então encontrar um óvulo da mesma espécie para fecundá-lo, como na reprodução humana.
Quando isso ocorre, eles se transformam em minúsculas larvas, que flutuam no oceano por alguns dias até encontrar uma superfície sólida para se fixar — local onde o coral vai se desenvolver e se espalhar ao longo da vida.
O pico reprodutivo da Mussismilia harttii acontece entre setembro e novembro, quando pesquisadores estão indo a campo para coletar algumas colônias de coral no Parque Municipal Marinho do Recife de Fora, em Porto Seguro, litoral sul da Bahia.
A reprodução dos animais está associada à fase da lua nova. “Esse é um mistério da natureza: para a maioria das espécies de corais do Oceano Pacífico e do Caribe, a desova acontece na fase da lua cheia. No hemisfério sul, ocorre na lua nova. Uma das possibilidades para explicar esse fenômeno é uma relação entre a desova e a amplitude e a oscilação da maré, o que facilitaria a dispersão das gametas.
Os corais coletados são levados para a base de pesquisas do Instituto Coral Vivo, também em Porto Seguro, e mantidos em tanques com água do mar. Além da Mussismilia harttii, o projeto trabalha com outras duas espécies da costa brasileira — depois eles são devolvidos à natureza.
A equipe de Godoy inicia o processo de congelamento dos gametas em nitrogênio líquido, a uma temperatura de -196°C. Não é algo simples. “Não é só resfriar o material como quando a gente coloca alguma coisa no freezer. É preciso retirar toda a água dos espermatozoides e dos óvulos, porque, em caso contrário, os cristais de gelo que se formam podem destruir as células”, explica Godoy.
Por ora, o sêmen congelado é enviado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde está sendo armazenado para posterior reprodução in vitro. Estudos preliminares apontaram que cerca de 30% dos espermatozoides sobreviveram ao descongelamento, uma taxa considerada alta.
“Estamos paralisando essas células no tempo. Nós conseguimos mantê-las vivas por até 50 anos. No momento oportuno, podemos trazê-las de volta à vida para auxiliar na conservação dos corais”, diz Godoy.
Por que os corais são importantes?
Os recifes de coral são conhecidos como “pequenas florestas tropicais do oceano”, em virtude de sua beleza multicolorida e e importância vital para o meio ambiente.
Os recifes são um dos ecossistemas mais produtivos e biologicamente ricos da Terra. Segundo estudo do World Resources Institute (WRI), instituição global de pesquisa científica, eles se estendem por cerca de 250 mil quilômetros quadrados, uma porção minúscula do oceano. Porém, estima-se que 25% de todas as espécies marinhas conhecidas usam os recifes como abrigo em algum momento da vida.
“Onde existem recifes há uma biodiversidade imensa. Quando eles estão doentes, muitas espécies desaparecem junto”, explica a bióloga Janaína Bumbeer, especialista em ciência e conservação da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.
“Eles têm a função de engenheiros, pois aumentam a complexidade do ambiente. Servem de abrigo para muitas espécies, que se escondem de predadores, se alimentam e até se reproduzem dentro das estruturas dos recifes”, diz Bumbeer.
A sobrevivência dos corais não é importante apenas para a biodiversidade do planeta, mas também para a economia e sobrevivência da população de muitos países, inclusive o Brasil.
Segundo o WRI, 850 milhões de pessoas no mundo vivem a menos de 100 km de um recife de coral e são suscetíveis de “obter benefícios dos serviços ecossistêmicos” produzidos por eles. Entre esses benefícios está a alimentação.
“As espécies de peixes associadas a recifes são importantes fonte de proteína (para a população), contribuindo com cerca de um quarto do pesca total nos países em desenvolvimento, em média”, diz o estudo.
Além disso, os recifes são vitais para movimentar o turismo em muitos países tropicais, como o Brasil, atraindo mergulhadores, praticantes de snorkel e pescadores recreativos. “Mais de 100 países e territórios se beneficiam do turismo associado aos recifes de coral”, aponta o WRI.
Por que os corais estão morrendo?
Uma série de problemas afeta a sobrevivência dos corais. Para a maioria, o principal algoz é o aquecimento global.
Os corais são coloridos porque abrigam as zooxantelas, microalgas que grudam na superfície do animal em uma relação de simbiose (ambos se beneficiam desse encontro).
“Essas microalgas fazem fotossíntese, e o material químico produzido por esse processo serve de alimento para os corais”, explica Leandro Godoy.
Com o aquecimento acentuado do oceano nos últimos anos, o processo de fotossíntese fica desregulado.
“Com a água mais quente, as algas passam a produzir um elemento tóxico para os corais. Então os corais ‘expulsam’ as algas de sua superfície. É por isso que eles ficam brancos: a gente passa a enxergar o esqueleto branco do coral, pois o tecido dele, sem as algas, é transparente. Sem essa relação de simbiose com as algas, eles acabam morrendo”, diz Godoy.
Há inúmeras outras ameaças aos recifes, e elas podem variar dependendo da região. A pesca predatória, por exemplo, ameaça 55% dos corais do mundo, segundo estudo do WRI.
“O corais sofrem muito quando a pesca é de arrasto, aquela com uma grande rede que chega ao fundo do mar arrastando tudo. Muitos são destruídos em segundos”, explica a bióloga Janaína Bumbeer.
Há outros problemas apontados pelos cientistas, como vazamentos de petróleo, pisoteamento dos recifes por turistas, sujeira despejada por navios e a poluição da água do mar por falta de saneamento básico nas cidades.
Política pública
Os pesquisadores envolvidos no congelamento do sêmen dos corais acreditam que o projeto pode ajudar a desacelerar a extinção dos recifes, além de ser uma espécie de “reserva de emergência” caso a situação piore no futuro, como indicam as projeções.
“Provavelmente, algumas espécies de coral serão extintas pois existem danos que não podem mais ser revertidos… Temos que aceitar que isso vai acontecer”, diz Godoy. “Mas acredito que criar esse banco de gametas pode ser muito importante para ajudar a repovoar algumas regiões. É um empurrãozinho que a ciência dá para conservar a espécie.”
Para Janaína Bumbeer, o congelamento de material genético pode se transformar em uma política pública no futuro.
“Acho que projetos como esse podem se traduzir em política pública pra tomada de decisões. Não há mais tempo de espera: os impactos ambientais são muito rápidos e visíveis. Temos potencial científico no Brasil, mas precisamos fazer nossa lição em casa e investir em conservação”, diz.
// BBC