Um mapeamento genético de habitantes de uma área da África oriental conhecida como Cinturão Linfoma, onde a transmissão da malária é tão intensa que leva ao desenvolvimento de um câncer pediátrico, identificou uma mutação genética que protege contra a infecção.
O estudo investigou se o histórico de migrações no continente e a intensa exposição à malária por várias gerações moldaram a composição genética dos habitantes da região.
Os resultados da pesquisa, liderada pelo professor Eduardo Tarazona, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e pelo pesquisador ugandês Sam Mbulaiteye, do Instituto Nacional do Câncer (NCI), nos Estados Unidos, foram publicados na revista científica PLOS genetics, uma das mais conceituadas da área.
Foram avaliados genomas, os sequenciamentos de DNA, de 1.700 pessoas de 25 grupos étnicos do Cinturão Linfoma, incluindo dados inéditos de Gana e do norte do Uganda. As análises mostraram uma mutação no gene ATP2B4 que se, não torna seu portador imune, ao menos dificulta o desenvolvimento do parasita causador da malária, transmitida pelo mosquito anopheles.
“O parasita infecta os glóbulos vermelhos e se alimenta do seu conteúdo. Ele precisa de um ambiente propício para sobreviver e parece que esse gene controla o nível de hidratação dentro dos glóbulos vermelhos. Ao que tudo indica, a presença desse variante torna essas células vermelhas menos propícias ao desenvolvimento do parasita”, explica o pesquisador Mateus Gouveia, que compartilha a autoria do artigo com Victor Borda, da UFMG, Kelly Nunes, da USP, e Andrew Bergen, do NCI.
A mutação foi mais frequentemente encontrada no norte do Uganda, em comparação com outros locais da África e do resto do mundo, o que indica um efeito protetivo para sobrevivência em regiões onde a malária é endêmica. Lá, a frequência é de 70%, enquanto no sul do continente, por exemplo, é de 10%.
“Este estudo mostrou que o ATP2B4 está sob seleção natural orientada pela malária, ao concentrar-se em populações onde há intensa transmissão da doença por mais de sete meses por ano e compará-las com áreas onde as condições não são favoráveis para transmissão da malária”, diz Mbulaiteye.
A explicação é que essa alteração genética antes era mais rara, mas como seus portadores têm mais chances de sobreviver e de deixar filhos, o variante genético foi se tornando comum ao longo de várias centenas de gerações.
Segundo Gouveia, pesquisador do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH), esse traço é uma novidade trazida pelo estudo. “Mostramos pela primeira vez que este variante dentro do gene ATP2B4 está sob seleção natural. Isso significa que os portadores desse variante possuem uma maior chance de sobreviver em regiões maláricas”, diz.
Os cientistas acreditam que os resultados da pesquisa podem abrir caminho para novos tratamentos para malária e, embasados por evidências científicas anteriores, também para o linfoma de Burkitt, um câncer mais frequente em crianças em torno dos 7 anos, associado a múltiplas infecções, como malária e HIV.
A relação entre as duas doenças ainda não é totalmente conhecida, mas sabe-se que a malária é um fator de risco para esse câncer. “Nessa região, as crianças que têm o linfoma tiveram antes malária. O mecanismo exatamente não é conhecido. O que é correto afirmar é que a malária predispõe, tanto que a distribuição das duas doenças é coincidente”, afirma Tarazona, coordenador do Laboratório de Diversidade Genética Humana da UFMG e líder da equipe brasileira do estudo.
O possível efeito protetivo da mutação contra o câncer está sendo testado em uma segunda fase do estudo, já em andamento no NIH. Nessa etapa, dados genômicos de cerca de 3 mil pessoas do Uganda, do Quênia e da Tanzânia serão analisados. Outro objetivo é calcular o grau de resistência contra a malária que a mutação confere ao portador.
Tarazona destaca outro avanço trazido pela pesquisa, dada a necessidade de estudar a genética de diferentes povos. “Ele nos dá a perspectiva global da diversidade humana. As populações mais estudadas são as de origem europeia. Existem regiões que nunca foram estudadas. Moçambique e Angola, por exemplo, foram muito pouco.”
Autoridades do Uganda estão acompanhando os resultados da pesquisa, que já foram apresentados ao primeiro-ministro do país, Ruhakana Rugunda, e discutidos com lideranças civis e religiosas. “O linfoma de Burkitt é um problema reconhecido no norte do Uganda. Além dele, a região sofre com muitas outras condições de infecção, algumas das quais podem estar correlacionadas com fatores genéticos”, diz o pesquisador do NCI.
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